Nos últimos anos, as barracas de camping se multiplicaram nas ruas de São Paulo. Segundo censo divulgado pela prefeitura no último dia 23, em 2021, havia 6.778 pontos na cidade com barracas de camping e barracos de madeira sendo utilizados como moradia improvisada. Em 2019, eram 2.051.
Antes do anúncio, no início do mês, a Folha de S.Paulo percorreu a região central para ouvir os relatos de sem-teto sobre como é viver nessas barracas, sobretudo em época de chuvas.
"Isso representa a precariedade da situação da população em situação de rua", afirma o psicanalista e professor da PUC-SP, Jorge Broide, que trabalha com a população de rua há mais de quatro décadas. "Acho muito triste, uma coisa que era utilizada como lazer por outra classe social, inclusive, torna-se agora uma precaríssima moradia."
Em nota, a prefeitura disse que as barracas são "usadas pela população em situação de rua em São Paulo e outras cidades do Brasil e do mundo".
Vivendo na praça da Sé há um ano, na altura do monumento de concreto que simboliza o Marco Zero, o casal Patrick Gomes Gonçalves, 32 anos, e Luisa Figueroa, 52, arrumava seu lar quando a reportagem da Folha chegou.
Eram por volta de 14h30 do último dia 4 quando a dupla se apressava em colocar lonas pretas por cima da barraca verde oliva, numa tonalidade igualmente usada na farda do Exército. Naquele momento já chovia na capital. A pressa era por dois motivos: evitar que a água infiltrasse tanto por cima como por baixo.
Após o término dos trabalhos, Luisa, ainda sob chuva, contou ser venezuelana. Com o desemprego em seu país, a técnica em veterinária decidiu buscar oportunidades no Brasil.
Há dois anos em São Paulo, disse que morava no Grajaú, na zona sul, com seu companheiro, que é pintor. Com ambos sem emprego e sem fonte de renda, ela contou ter se tornado inviável pagar o aluguel.
Na praça da Sé há um ano, Luisa afirmou que busca voltar a trabalhar na área em que se especializou. "Coloco currículo virtual, físico, mas nunca me chamam."
Para sobreviver, ela vende água e café pelas ruas do centro, porém com o que ganha dá apenas para eles se alimentarem. Mesmo com a situação em que vivem, a venezuelana não se queixa da vida, mas dos ratos que proliferam à noite pela Sé e, às vezes, procuram comida dentro das barracas.
Poucos passos adiante, no sentido da Catedral, estava a barraca da desempregada Isabela Letícia Lopes, 25. Ela relatou estar há cerca de um mês na praça, após deixar Itu, no interior paulista. Segundo ela, que mora com o marido, a vida do casal mudou depois de ele perder o emprego de tatuador.
"Colocamos lona para proteger o cobertor, a roupa. A gente tem que colocar lona por cima e por baixo. A gente coloca em cima para fugir da chuva e no chão porque escorre água", disse ela sobre a rotina para se proteger das chuvas de verão.
"Nunca tinha morado em uma barraca. Morava em casa ou abrigo. É diferente. É horrível, por ser apertado. Quando chove muito a gente não sabe se vai alagar, as barracas são frágeis."
Outros moradores de rua, porém, não têm condições de adquirir uma barraca ou não tiveram a sorte ainda de receber uma como doação. Com isso, se viram como podem para se abrigar da chuva ou do sol.
Esse é o caso de Carlos Alexandre, 34. Ele está há quatro meses em São Paulo, após ter saído do Rio de Janeiro em razão de brigas familiares. Na hora da chuva, estava abrigado em uma marquise na praça do Patriarca.
"[Na hora da chuva] é procurar uma marquise. Mas o problema maior é o vento, que leva tudo", disse, para, logo na sequência, perguntar ao repórter se não tinha como conseguir uma barraca para ele.
Em outra praça da região central, a da República, havia uma barraca prateada, bem diferente das demais vistas pela reportagem. O abrigo, segundo seu proprietário, o carroceiro André Paulo, 46, custou R$ 1.000, é impermeável, e com espaço suficiente para abrigar ele, a esposa e seus cães.
"Se eu não tivesse a barraca, eu estava na roça. A barraca é impermeável, mas sempre uso lona para proteger os cachorros", disse Paulo. Ele afirmou morar ali há um ano.
Enquanto ele falava com a reportagem, Vilma Alves de Souza, 62, aproximou-se para se queixar de que a chuva havia molhado os pertences dela. Com uma barraca mais simples, ela não estava no local no momento do temporal.
"Minhas roupas estão todas molhadas. Eu estava no hospital, quando cheguei, estava toda molhada", disse Vilma.
Durante a conversa, contou que passou a viver nas ruas após ser acometida por uma depressão, causada pela morte do marido, que, segundo ela, foi assassinado a tiros há três anos no Butantã, na zona oeste. "Não bebo, não fumo, não me drogo. Depois que mataram meu esposo, passei a morar na rua. Ele estava lavando o carro quando foi baleado."
Em outro ponto da cidade, na avenida Paulista, o desempregado Almir Evangelista dos Santos, 62, contou ter comprado a sua barraca de um conhecido, após juntar R$ 400 obtidos com o auxílio emergencial. Ele disse viver há cinco meses em frente ao parque Tenente Siqueira Campos, o Trianon.
Santos afirmou que buscou a avenida pela visibilidade, na esperança de que alguém o ajudasse a conseguir uma fonte de renda. "Eu morava em uma pensão em Santana, mas achava muito monótono. O bom era o banho quente e carregar o celular. Eu quero uma coisa melhor, uma pessoa que me veja e possa me arrumar um trabalho."
O relógio já marcava quase 18h quando o desempregado José Júlio Cesar Rosa, 33, estendeu suas roupas na proteção de ferro que separa a calçada da avenida Paulista. Mesmo com a lona colocada sobre a barraca, a chuva acumulada por dois dias foi mais forte do que a proteção que serve como telhado de sua moradia, no cruzamento com a rua Teixeira da Silva.
"A chuva foi muito forte. Molhou tudo. Mesmo com a lona não teve jeito, também infiltrou por baixo", disse. Segundo ele, a solução seria colocar paletes no piso para erguer a barraca, mas não era uma tarefa fácil localizar os objetos de madeira sem desembolsar algum valor.
Além da chuva, Rosa, que vive nas ruas há 12 anos, queixou-se do sol, que torna sua moradia um forno. "A lona deixa muito abafado, quente, não tem ventilação. Mas é minha casa, tem colchão, minha coberta. É como se fosse meu quarto."
Com a esposa grávida de três meses, sua vontade é juntar suas coisas, superar as desavenças com a família e voltar para os braços da mãe, que mora em Guaratinguetá, no interior paulista.
"Evidente que tem uma questão econômica, tem uma questão social, tem uma crise generalizada, mas também é necessário se buscar novas soluções, novas ações, novas políticas públicas, para enfrentar essas problemáticas", disse Jorge Broide sobre o aumento na quantidade de moradores de rua e de suas barracas na cidade.
Em nota, a Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social, informou que "mantém uma rede de atendimento socioassistencial voltada às pessoas em situação de rua e trabalha na criação e aprimoramento de políticas públicas em concordância com o Sistema Único de Assistência Social".