Depois de, em pouco mais de um ano, três grandes países latino-americanos avançarem em relação à descriminalização do aborto, direita e esquerda no Brasil dizem considerar remotas as chances de o Congresso alterar neste ano as atuais regras -seja para que lado for.
A interrupção de gravidez é tema de acaloradas discussões na Câmara e no Senado, mas nas últimas legislaturas qualquer modificação tem sido barrada pelos dois lados.
Bolsonaristas e as bancadas religiosas travam qualquer avanço na liberalização. Por outro lado, e apesar da profusão de projetos apresentados, não conseguem emplacar um endurecimento da lei -há resistência da esquerda e de parlamentares que dizem considerar satisfatória a atual legislação.
Nesta segunda-feira (21), a Corte Constitucional da Colômbia decidiu que nenhuma mulher poderá ser julgada por um aborto realizado até a 24ª semana da gestação. A decisão foi tomada por cinco votos a favor e quatro contra, retirando o procedimento da lista de delitos do Código Penal -quando realizado dentro desse prazo.
A mudança é vista como conquista histórica para a luta feminista num país de maioria católica em que, a cada ano, cerca de 400 mulheres eram condenadas a penas de 16 a 54 meses de prisão por interromperem a gravidez.
A decisão torna a Colômbia o principal país da América do Sul, em termos de população, a descriminalizar o procedimento -e a terceira grande nação da América Latina a fazê-lo em pouco mais de um ano, junto ao México e à Argentina.
"Não acho que o Arthur Lira [presidente da Câmara, PP-AL] vai bancar esse desgaste, não vejo possibilidade de votação neste ano", afirma o presidente da bancada evangélica, o deputado Sóstenes Cavalcante (União Brasil-RJ).
Apesar dos discursos inflamados, igual posição é reafirmada por outros parlamentares, em caráter reservado.
O Congresso brasileiro tem hoje uma maioria conservadora e o Executivo, sob Jair Bolsonaro (PL). é comandado por um presidente abertamente favorável ao endurecimento das leis do aborto, mas há três fatores que impedem o avanço da pauta bolsonarista nessa questão.
Apesar de estar em minoria, a esquerda conseguiu nesta legislatura contrariar as expectativas e barrar as principais propostas do setor conservador sobre o tema -entre elas a inclusão na Constituição do entendimento de que a vida começa na concepção e a instituição do chamado Estatuto do Nascituro.
Os projetos são capitaneados por parlamentares como a deputada bolsonarista Chris Tonietto (União Brasil-RJ). Entre outros pontos, proíbem o aborto mesmo em caso de estupro e criam uma bolsa a mulheres que engravidem após estupro.
A Folha não conseguiu falar com Tonietto nesta terça-feira (21).
"Há uma contenção na bancada feminina a retrocessos como esse. Mas há um caça às bruxas em projetos variados, tentando impedir o acesso à atual legislação. Tentam tolher qualquer projeto que faça menção a direitos reprodutivos, a gênero", afirma a deputada Sâmia Bonfim (PSOL-SP).
Um segundo ponto é que 2022 é o último ano da atual legislatura. Geralmente, projetos mais polêmicos se concentram no início do mandato dos parlamentares.
Por fim, o processo eleitoral também contribui para que o tema não esteja na lista de prioridades de líderes partidários. Além de candidatos quererem evitar polêmicas próximo ao pleito, o Congresso normalmente se esvazia no segundo semestre de anos eleitorais.
De acordo com parlamentares ouvidos pela reportagem, pode até haver uma ou outra discussão ou até votação em comissões, mas dificilmente o tema será levado a plenário. No Senado, o presidente Rodrigo Pacheco (PSD-MG) também indica que não irá pautar o assunto -principalmente as propostas do lado conservador.
Ao contrário de países que, na esteira da revolução sexual, nas últimas décadas ganharam legislações mais liberais para a interrupção voluntária da gravidez, o Brasil tem há 80 anos um mesmo ordenamento penal para o aborto. A única alteração ocorreu há oito anos –e por via jurídica, não legislativa.
Em 1940, um decreto do então presidente Getúlio Vargas passou a prever no Código Penal casos em que o aborto não se constituiria crime, se praticado por um médico: estupro e risco à vida da gestante. Desde então, a lei pune com um a três anos de prisão a mulher que realiza o procedimento fora da previsão legal.
Em 2012, o STF (Supremo Tribunal Federal) determinou que a interrupção da gestação de fetos anencéfalos não configura crime.
A Colômbia também é o primeiro país latino-americano em que a descriminalização se deu sob um governo de direita, como o de Iván Duque, ainda que a decisão não tenha partido dele, mas da Justiça. O presidente, aliás, criticou a decisão. "Estamos diante de uma decisão que diz respeito a toda a sociedade colombiana, e cinco pessoas não podem propor algo tão atroz para a nação", disse, em comunicado nesta terça. Segundo ele, a mudança poderia transformar o aborto em um mecanismo de contracepção.
Bolsonaro também se manifestou com críticas à Corte do país vizinho. "Que Deus olhe pelas vidas inocentes das crianças colombianas, agora sujeitas a serem ceifadas com anuência do Estado no ventre de suas mães sem a menor chance de defesa", escreveu no Twitter. "No que depender de mim, lutarei até o fim para proteger a vida de nossas crianças."
Depois, voltou à rede social para reforçar sua posição e atacar adversários. "No Brasil, a esquerda festeja e aplaude [...] Trata-se da vida de um bebê que já tem tato, olfato, paladar e que já ouve a voz de sua mamãe. Qual o limite dessa desumanização de um ser inocente?"
No caso mexicano, em que o presidente Andrés Manuel Lopez Obrador também se opôs à posição do Judiciário, a descriminalização é nacional, mas os estados regulamentam o recurso nos Parlamentos locais. A Argentina aprovou via Congresso uma lei de aborto apenas pela vontade da mulher até a 14ª semana de gestação, podendo ser realizado em clínicas e hospitais públicos, sem custo.
Na América Latina, o aborto ainda é permitido e legalizado em Cuba, no Uruguai e na Guiana.