Houve um tempo em que Abbas Kiarostami e Mohsen Makhmalbaf representavam (todo) o cinema iraniano. Foi naqueles tempos em que Leon Cakoff colocou o Irã no mapa do cinéfilo, por intermédio da Mostra. Kiarostami virou um autor internacional - sem renegar suas origens - e os problemas de Jafar Panahi com o regime dos aiatolás fizeram dele o autor iraniano mais conhecido (e defendido, incensado) em todo o mundo. Mohsen viu a filha - Samira - tornar-se cineasta, pareceu ter recuado a um discreto segundo plano. Mas ele volta, e ainda surpreende.
Makhmalbaf é o atual presidente da Academia Asiática de Cinema. E também dirige O Presidente, que estreou na quinta, 10. É um belo filme. Makhmalbaf admitiu que se inspirou nas histórias de ditadores que enfrentaram, melhor seria dizer, sucumbiram à chamada ‘primavera árabe’, que varreu, com os ventos da transformação, o Oriente Médio e o norte da África. Uma cena em especial, próxima do desfecho, faz referência direta ao que ocorreu com o outrora poderoso Muammar Kadafi na Líbia. Mas Makhmalbaf filmou na Geórgia - a distância do Irã fez-lhe bem, e acentua o caráter universal de O Presidente.
O filme passa-se, supostamente, num país fictício do Cáucaso. O homem que um dia governou a região com mão de ferro foi deposto por uma revolução e agora, disfarçado de músico e na companhia apenas do neto, tenta fugir. Makhmalbaf cria cenas que evocam o período em que o presidente era poderoso. Elas se contrapõem ao caos vivido pelo país. E tudo é visto pelos olhos do garoto, o que implica um certo (e intencional) tom ingênuo. Todo mundo reclama - os soldados, o povo, até o presidente (que não é mais). É uma polifonia de vozes, quase sempre discordantes. Só se unem no protesto. Por longínqua que seja a paisagem, muita coisa vai parecer próxima do espectador brasileiro.
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Em filmes como O Ciclista e Salve o Cinema, Makhmalbaf assimilou a herança neorrealista que foi tão importante na eclosão mundial do cinema iraniano. Em Gabbeh, teceu um relato sofisticado baseado na cor. Em O Presidente, surpreende por trabalhar sobre recursos amplos. Cenas de multidão, explosões, amplos movimentos de câmera - tudo isso é necessário para fazer evoluir a história. Só que, malgrado tudo isso, o tom permanece intimista. O elenco é decisivo, em especial Dachi Orcelashivi, que faz o neto. O garoto é cativante. Mas há uma questão que se coloca nisso tudo, e é a que vale abordar. Makhmalbaf foi sempre um humanista. Ao adotar o ponto de vista do menino, e mostrar o ditador como o avô que tenta protegê-lo, ele não está humanizando um monstro?
Tem sido a questão ética levantada pela crítica desde que 'O Presidente' passou em importantes festivais internacionais (Veneza, Busan, Beirute). O caráter totalitário do regime rende uma cena surreal. Do alto do palácio de onde se descortina a cidade inteira, vovô tem o menino sentado nos joelhos. E resolve brincar com ele. Vovô, com um simples telefonema, faz com que todas as luzes da cidade se apaguem. O garoto maravilha-se. Mas logo vem a revolução e as luzes do regime apagam-se para sempre. Privado do seu palácio, o ex-ditador, que nunca se deu conta do que o regime corrupto fazia com o povo, começa a ouvir as pessoas, mas é tarde demais. Para ele, com certeza, talvez não para o neto.
Aos que reclamam, e chegam a comparar O Presidente com A Vida É Bela, a fantasia de Roberto Benigni sobre o Holocausto - sempre que a situação chega a um limite vovô tenta tranquilizar o neto -, Makhmalbaf pode retrucar dizendo que, na verdade, está querendo evitar o maniqueísmo. Seria muito fácil demonizar o personagem. Dentro de uma estrutura de farsa, chega a ser patética a forma como o velho ditador - perdão, presidente - adquire uma consciência tardia. É o que faz a complexidade do filme do autor iraniano.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.