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Resgate

Cenografia, a arte de levantar cidades

Folha de Londrina/AE
31 dez 1969 às 21:33

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- Divulgação/TV Globo
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No volante de um Jaguar verde conversível de 1952, Ana Paula Arósio passeia pelo Parque do Ibirapuera; Bruno Gagliasso caminha pelo jardim francês do Museu Paulista, no Ipiranga; Marcello Antony mora na Vila Mariana - numa casa inspirada nas linhas de Gregori Warchavchik (1896 -1972), arquiteto que construiu a primeira casa modernista paulistana. Ibirapuera, Ipiranga e Vila Mariana são bairros da zona sul de São Paulo, que, assim como o Centro da cidade, estão representados em ''Ciranda de Pedra'', novela das 18h, da TV Globo.

Mas a São Paulo da TV é de 1958 e foi construída por May Martins - ironicamente, uma carioca da gema, daquelas que não trocam o Leblon por nenhum outro lugar do mundo. Especialista em erguer espaços, ruas e cidades que não existem mais, ela é quase uma anônima entre os noveleiros de plantão, mas uma grife entre diretores e atores.

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''A primeira vez que tive a oportunidade de trabalhar com ela foi em A Muralha, que considero um marco cenográfico na TV brasileira'', conta a escritora Maria Adelaide Amaral, autora da minissérie que foi ao ar em 2000. ''Nunca até então o século 17 paulista havia sido representado de maneira tão despojada, essencial e sem aquele falso glamour das produções de época.''

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O trabalho foi resultado de uma imensa pesquisa histórica da cenógrafa, que chegou à conclusão de que ''havia mais do que um oceano separando Paris de São Paulo''.


Entre os documentos de época, ela achou um testamento em que o pai deixava para os dois filhos as fivelas de prata de um par de sapatos, por serem bens considerados valiosos.

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''Cristais e porcelanas, assim como qualquer coisa quebrável, não resistiam à dura viagem de São Vicente a São Paulo. O caminho era muito difícil, porque eles tinham de enfrentar uma muralha, a Mata Atlântica'', explica May.


''As pessoas precisavam carregar os animais nas costas, de tão íngreme que eram alguns trechos da subida da serra. E São Paulo aparecia nos registros como uma cidade insalubre, que convivia com enchentes, nas quais morriam muitos animais.''

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Passado recente


Construir São Paulo na década de 50 seria a princípio muito mais fácil do que imaginá-la há quatro séculos. ''Engana-se quem pensa assim. Quanto mais recente a época, maior a preocupação com o realismo da reconstrução, pois ainda existem testemunhas.'' Mesmo não tendo a função de documentário, segundo May, muita gente assiste à novela como a uma história viva, verdadeira.

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Depois de levantar imagens em livros, revistas e filmes, May passou alguns fins de semana registrando referências arquitetônicas que ainda estão de pé nas ruas paulistanas. ''Ter a oportunidade de entrar nessas construções, verificar proporções, volumes, acabamentos e mesmo a luminosidade faz toda diferença na hora de montar o cenário'', explica o cenógrafo assistente Mauro Vicente Ferreira, integrante da equipe de May, que também bateu perna para desvendar São Paulo.


Cidade cenográfica

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Num espaço de 6 mil metros quadrados no Projac, a Central de Produções da Globo em Jacarepaguá, no Rio, a equipe reproduziu duas regiões de São Paulo: o Centro e o bairro da Vila Mariana, na zona sul. Casas, prédios, loja de doces, barbearia, lanchonete e um banco surgiram em ruas largas o suficiente para Ana Paula Arósio dirigir seu Jaguar verde. Uma operação que contou com a ajuda de 13 arquitetos.


Entre as cinco vias paulistanas ali reproduzidas, a Rua Apeninos - que existe de fato em São Paulo - surgiu com construções que não lembram em nada a original.

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''Usamos referências de todas as partes do bairro da Vila Mariana. A idéia era reunir no mesmo espaço o maior volume possível de referências arquitetônicas para dar o clima de uma bairro que realmente florescia culturalmente e representava a classe média na época'', conta May.


O mesmo recurso foi usado para a Centro. ''A fachada do Edifício Desembargador Guilherme Queiroz Filho, de Natércio (interpretado por Daniel Dantas), saiu das linhas da Biblioteca Mário de Andrade, e a da lanchonete, do prédio do Primeiro Tribunal de Alçada Cível, localizado no Pátio do Colégio.''


Fidelidade nos ambientes internos


A cidade cenográfica de ''Ciranda de Pedra'' não se restringe apenas às fachadas. ''Os ambientes internos são montados com a cara de cada personagem. Estuda-se texturas, tecidos, móveis de época, enfim, tudo o que for necessário para montar uma casa'', diz a cenógrafa May Martins, que nessas horas dá uma de decoradora.


Construídos dentro do estúdio onde a maioria das cenas acontecem, quartos, salas e escritórios às vezes se repetem na cidade cenográfica. É o caso da pensão, que ganhou na parte interna uma sala de visita igual à montada no estúdio. ''Em algumas cenas, precisamos da luz natural e da perspectiva da rua para filmar. Daí saímos do estúdio para a cidade cenográfica.''


''May sempre contribuiu com novidades técnicas importantes, que têm a ver com profundidade e visão de óptica, por exemplo'', diz Denise Saraceni, diretora de ''Ciranda de Pedra'', que há 11 anos desenvolve parcerias com a cenógrafa - entre elas, a minissérie ''Queridos Amigos'', deste ano.


São alguns truques que o telespectador nem percebe no produto final, mas que enriquecem a imagem. Como a construção de cenários com paredes em ângulo oblíquo e não com o usual ângulo reto. ''O recurso virou linguagem em Queridos Amigos'', explica Denise.

May explica que o ângulo oblíquo dá mais profundidade à cena, ou seja, a câmera chega mais longe, reunindo assim mais informações e sensações. Tudo para intensificar a viagem do telespectador.


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