O projeto de lei Antiaborto por Estupro, que teve o regime de urgência aprovado em votação-relâmpago na Câmara na semana passada, não é consenso nem mesmo entre representantes da direita no Congresso.
Parlamentares de partidos como União Brasil, Solidariedade, PP e PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro, admitem reservadamente que o conteúdo do texto tem problemas e avaliam que a direita perdeu para a esquerda no debate.
Para uma ala desses deputados e senadores, o projeto foi descrito como um "tiro no pé", já que é uma pauta que poderia ter apoio da sociedade, mas trouxe elementos que são criticados até mesmo pelo eleitor de direita -como, por exemplo, a possibilidade de uma mulher vítima de estupro que faz aborto ter pena maior do que o seu estuprador.
O projeto de lei altera o Código Penal para aumentar a pena imposta àqueles que fizerem abortos quando há viabilidade fetal, presumida após 22 semanas de gestação. A ideia é equiparar a punição à de homicídio simples.
"O tema foi mal colocado, a direita errou na condução desse processo e deu munição para ataques da esquerda", diz o líder do Solidariedade na Câmara, deputado Aureo Ribeiro (RJ).
Um líder do centrão diz, sob reserva, que essa discussão foi ruim para a direita e até mesmo para bolsonaristas. O próprio Bolsonaro teve postura comedida sobre o projeto, sem endossá-lo publicamente, o que foi interpretado por aliados como uma sinalização de que ele quer distância da polêmica.
A ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro nem sequer se manifestou sobre o projeto de lei nas redes sociais.
Para esse dirigente do centrão, a expectativa é que o tema saia do radar e não seja votado na Câmara agora.
A crítica ao projeto de lei também encontra ressonância em parlamentares mais alinhados ao ex-presidente, que veem exageros no texto. Nas redes sociais, muitos optaram pelo silêncio.
Em sessão de debates sobre o tema no Senado nesta segunda-feira (17), a senadora Damares Alves (Republicanos-DF), ex-ministra do governo Bolsonaro, lançou dúvidas sobre a proposta e disse ainda que ela pode não ter ocorrido em momento oportuno.
"Nós temos dúvidas sobre o texto? Temos. Foi em momento oportuno a apresentação do projeto? Tenho dúvida. Será que não era para a gente estar discutindo lá no âmbito do Judiciário, ajudando o CFM [Conselho Federal de Medicina] a enfrentar este debate lá no STF?", afirmou Damares.
Segundo ela, a discussão da proposta foi uma decisão política em "uma reação do Congresso a uma decisão" do ministro Alexandre de Moraes, do STF (Supremo Tribunal Federal).
Moraes suspendeu todos os processos judiciais e procedimentos administrativos e disciplinares provocados por resolução do Conselho Federal de Medicina.
A resolução proibia a assistolia fetal, procedimento que consiste na injeção de produtos químicos no feto para evitar que ele seja retirado do útero com sinais vitais.
Ele é recomendado pela OMS (Organização Mundial de Saúde) e é tido pelos protocolos nacionais e internacionais de obstetrícia como a melhor prática assistencial à mulher em casos de aborto legal acima de 20 semanas.
O projeto de lei é de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), ex-presidente da frente evangélica da Câmara. Um dos argumentos contrários à proposta diz respeito à forma como foi apresentada. A avaliação de parlamentares é a de que eles não conseguiram rebater a tese de que o texto não afetaria crianças vítimas de violência sexual.
Defensores da proposta falam que eles são inimputáveis, mas o texto pode levar meninas abaixo dos 18 anos a ficarem internadas em estabelecimento educacional por até três anos.
Um dos motes de parlamentares que são contrários à votação do projeto é o de que "criança não é mãe". Membros da direita dizem que essa narrativa encontrou adesão na sociedade civil.
Líder do PL na Câmara, o deputado Altineu Côrtes (RJ) minimiza as críticas e afirma que há uma "falsa impressão" de que há uma vitória da esquerda na opinião pública e nas redes.
"O que existe hoje é uma guerra de narrativa encaminhada por grande parte da imprensa, que tem falsa impressão de que existe uma vitória na opinião pública e nas redes. O projeto tem força para ser aprovado tanto na Câmara quanto no Senado", diz.
Uma liderança de direita diz que um exemplo de como as críticas ao projeto foram expressivas é o fato de que ela uniu pessoas em manifestações de rua contrárias ao texto -algo que a esquerda não vinha conseguindo mobilizar.
Ele cita como exemplo as manifestações do "Ele, não", contra Bolsonaro, em 2018, ainda que em menor escala.
A principal consequência disso, segundo parlamentares, é uma vitória para o governo Lula (PT) num momento em que o presidente estava sob pressão após enfrentar reveses em votações no Congresso, principalmente nas chamadas "pautas de costume".
Num primeiro momento, governistas disseram que o projeto antiaborto não era tema de governo -e foram criticados por apoiadores. O próprio Lula demorou para se posicionar acerca do assunto, mas depois de manifestações de ministros, deu declarações críticas ao projeto, classificando-o como uma "insanidade".
Diante da repercussão negativa ao projeto, deputados e senadores da direita já admitem mudar o teor da proposta numa tentativa de aprová-la.
O próprio presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), declarou publicamente que "o sentimento da Casa não é para avançar para liberação do aborto e também não é para descumprir os casos que já são permitidos hoje em lei". Lira indicou que o que está em discussão no projeto é a assistolia fetal.
Uma tese que circula entre deputados de direita é a de retirar do texto a punição para as mulheres que fizerem aborto acima da 22ª semana dentro das opções da lei, mas mantê-la para médicos que realizarem esse procedimento.
Na avaliação desses parlamentares, a hipótese tira o argumento da esquerda de penalização da vítima, mas, na prática, torna inviável a realização do procedimento.
Outra possibilidade, defendida pelo próprio Sóstenes Cavalcante, é a de aumentar a pena para estupradores.