O PL 1904, que equipara a pena de aborto por estupro após 22 semanas de gestação à reclusão prevista em casos de homicídio simples, abre margem para que outras situações em que o procedimento é permitido no país, como risco à vida da mãe e anencefalia fetal, sejam afetadas.
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Segundo advogados ouvidos pela Folha de S.Paulo, embora o texto associe a limitação de tempo gestacional apenas às gravidezes resultantes de estupro, a existência da expressão "viabilidade fetal" será uma condicionante para o direito, além do texto, de forma geral, gerar um obstáculo de acesso ao serviço.
Para o advogado Henderson Fürst, presidente da Comissão de Bioética da OAB-SP e professor de direito constitucional na PUC (Pontíficia Universidade Católica) Campinas, a proposição afetará também gestantes em risco de vida e fetos anencéfalos, uma vez que criará uma nova barreira na proteção da saúde da mulher.
"Não fossem suficientes os tristes números de violências físicas e sexuais contra as mulheres no Brasil, flerta-se com criar uma das normas mais cruéis com base em gênero na história contemporânea de países democráticos", afirma Fürst.
"Ainda que isso seja corrigido com puxadinhos legislativos, não irá resolver o problema principal: as incontáveis barreiras que impedem a realização do procedimento de forma célere, segura e gratuita."
O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira, afirmou nesta quinta-feira (13) que o projeto não irá modificar os casos em que o aborto já é autorizado no Brasil. De acordo com o chefe da Casa, uma relatora será escalada para dar "tom" à proposição.
"É um texto polêmico e, se não tiver condição, se não tiver consenso, não vai ao plenário. Mas, por sentimento, entendo que o Congresso não irá avançar em cima do que já está pacificado na legislação", disse.
Gabriela Rondon, advogada e pesquisadora do Anis Instituto de Bioética, afirma que o PL aponta para casos de estupro, mas diz que o uso do termo "viabilidade fetal" abre brechas interpretativas, uma vez que é possível alegar viabilidade antes de 22 semanas e em gravidezes de risco ou em fetos anencéfalos.
"O acesso ao aborto legal já é extremamente restrito e difícil com a previsão que temos hoje. Se adiciona uma restrição, mesmo que seja só em relação de estupro, é fácil imaginar que vá extrapolar para os outros casos", afirma.
Rondon diz que exigências indevidas já acontecem. A Folha mostrou que mulheres que teriam direito ao aborto legal encontraram uma série de barreiras ao acesso, como hospitais que alegaram haver limite de tempo gestacional para o procedimento, recusa médica e atendimento desrespeitoso.
Para a criminalista Roselle Soglio, professora de direito e processo penal, a menção à viabilidade do feto afetará não somente o aborto legal acima de 22 semanas, mas também a prática feita abaixo deste período gestacional.
"Vai colocar mulheres que têm gravidezes de altíssimo risco em uma situação em que pode levar à morte", diz. "Além dessa história de estupro, está abrindo para outras circunstâncias."
Letícia Ueda, advogada e integrante do Coletivo Sexualidade e Saúde, afirma que, mesmo que o PL retrocedesse, e a equiparação de pena ficasse restrita ao aborto não previsto por lei, isso afetaria a interrupção legal. "A partir do momento que você estabelece que é homicídio, se estabelece a ideia de que é crime contra a vida e de que o feto tem personalidade jurídica", diz.
Segundo a advogada, isso faz crescer o estigma referente ao aborto, além de aumentar o medo da criminalização. "Afeta a atuação dos profissionais do serviço de aborto legal e afeta as pessoas que buscam o serviço."