O Brasil só terá aval da ONU para operar um submarino de propulsão nuclear, projeto ao qual se dedica há 45 anos, se abandonar as posições históricas de resistência a inspeções detalhadas de suas instalações atômicas.
"Ter um submarino nuclear é legítimo. Se o país quer um, tem de fazer um acordo com a AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), que será muito estrita no regime de inspeções. Eu preciso dar garantias para a comunidade internacional", disse à reportagem Rafael Grossi, diretor-geral do órgão das Nações Unidas.
Em sua primeira conversa fora dos autos da AIEA sobre as negociações iniciadas em junho de 2022 acerca do projeto, Grossi sugeriu que a autorização para a operação submarino nuclear Álvaro Alberto só deverá sair, se tudo der certo, em até cinco anos. "Pode ser um pouco menos", afirmou.
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Ele deu prazo semelhante à discussão do caso da Austrália, que entrou com pedido semelhante também em 2022, após firmar inédito acordo militar com os Estados Unidos e o Reino Unido que prevê o fornecimento de modelos americanos e posterior construção de submarinos de propulsão nuclear no país da Oceania.
Grossi diferencia as análises. "O caso do Aukus [nome da aliança militar] está dentro de uma realidade política totalmente diferente. É uma questão de alta politização", disse, sobre a resistência da China, que não quer ver mais submarinos nucleares adversários no seu flanco estratégico sul, ao projeto.
"Não é o caso do submarino nuclear brasileiro. O Aukus é um projeto trinacional, o Brasil tem um desenvolvimento autóctone do ponto de vista de salvaguardas e inspeções", afirmou o diretor-geral.
Ele prevê "negociações muito difíceis" quando o caso do Aukus for analisado pela Junta de Governadores, o centro decisório da AIEA, que tem 35 membros. Lá estão os rivais centrais da Guerra Fria 2.0, EUA e China, em posições antagônicas.
"Os projetos lamentavelmente ocorrem em um momento de tensões internacionais mais altas, em especial no Indo-Pacífico, no mar do Sul da China. Imediatamente, há uma leitura política e militar sobre o porquê desses submarinos [americanos na Austrália] e qual o impacto que terão. Não faz minha vida mais fácil, mas tudo nessa agência é delicado e complexo", resume Grossi.
Questionado como a briga entre cachorros grandes afeta o pleito brasileiro, ele diz que sua função é "manter a mente asséptica e contar com a boa-fé de todos".
Ao comentar relatório sobre o caso em junho, o embaixador chinês na AIEA, Li Song, disse não se opor ao Álvaro Alberto, mas sim ao projeto do Aukus. A China aponta como violação o fato de que os modelos americanos usam combustível retirado de bombas desativadas, com grau de enriquecimento de quase 100% -nos submarinos franceses, é de 10%.
As boas notícias para Brasília acabam aqui. Tanto no caso do Brasil quanto no do Aukus, a análise é inédita: até aqui, apenas seis potências com a bomba atômica operavam submarinos de propulsão nuclear.
Isso leva ao que preocupa a AIEA, o combustível dos submarinos. A agência mantém rígido controle sobre material físsil, por exemplo em usinas nucleares. "Um navio militar não pode ser inspecionado sempre, passa muitos meses sem controle no mar. Um proliferador hipotético pode se aproveitar", diz Grossi.
Ele diz que "o princípio legal [dos dois casos] é o mesmo, mas as soluções serão distintas". "Ambos os países reconhecem que há muita via de escape de material, então devem aceitar um esquema muito estrito de controle."
Tal esquema, o chamado Procedimento Especial, é um protocolo de contagem do material antes e depois de uma missão, com o devido acesso a diversas áreas sensíveis da embarcação e de seu apoio em terra.
Isso esbarra na posição brasileira.
O país é signatário do TNP (Tratado de Não Proliferação Nuclear), mas sempre se recusou a aderir aos chamados Protocolos Adicionais de 1997 -basicamente, acesso facilitado a inspetores da AIEA, vistos como um risco à soberania e a segredos industriais. As nações do Aukus o assinaram, reforçando a argumentação nacionalista de manipulação das grandes potências.
No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2004, houve uma crise quando o Brasil vetou a inspeção de suas ultracentrífugas, os aparelhos que promovem a transformação de gás de urânio em combustível nuclear, cujo grau de enriquecimento pode ir do uso em usinas (3%-5%) ao da bomba (80%, podendo ser menos).
Agora, o que se negocia é bem mais invasivo. "Em teoria, é possível ter um protocolo separado [sem assinar os de 1997]. Mas, na realidade, é quase um debate acadêmico. Temos de desdramatizar as coisas. Proteger segredos industriais e comerciais, mas temos de avançar a um regime aceitável", afirmou. "O mundo de 1997 não é o de 2020, o Brasil está mais maduro. No fim do dia, o país não tem nada a ocultar."
Ele afirma que as negociações incluirão um problema central para o Brasil, que é a origem de seu combustível nuclear. Apesar de dominar o ciclo completo de produção, o país não tem capacidade hoje para fazê-lo de forma certificada.
Após anos ouvindo não dos EUA, o Brasil buscou ajuda na Rússia, como a Folha mostrou, mas a Guerra da Ucrânia dificultou o andamento das conversas. Há óbices técnicos também. O Álvaro Alberto é a culminação do projeto nuclear da Marinha, de 1979, mas só foi vislumbrado no escopo do acordo militar Brasil-França de 2009.
O Prosub (Programa de Desenvolvimento de Submarinos), orçado em valores corrigidos em R$ 65 bilhões, já entregou 2 dos 4 modelos de propulsão convencional baseados no francês Scorpène -o mais recente, o Humaitá, entrou em operação na sexta passada (12).
O projeto prevê, ao fim, o modelo nuclear. Após vários atrasos, está previsto de forma otimista para ir ao mar em 2033. Até lá, precisará resolver questões relativas à integração de seu reator ao casco, algo que os franceses ainda não toparam fazer, como a Folha relatou.
Enquanto isso, Grossi quer visitar o Brasil neste ano para debater a questão. A reportagem procurou o programa nuclear da Marinha e a missão brasileira na AIEA, mas não obteve resposta.