A simbologia da Páscoa tem mistério, paixão e dramaticidade, além dos muitos ovos de chocolate, quatro dias de folga e mesa farta. No hemisfério Norte, as comemorações estão associadas à primavera, a estação do renascimento por excelência, o que dá sentido aos mais populares símbolos da festa: o coelho, um animal de grande fertilidade, e o ovo, um símbolo universal do renascimento que os cristãos usam para representar o renascimento da fé. ''Nos trópicos, a data cai no outono, que tem simbologia oposta.
Os estudiosos da liturgia cristã ainda não encontraram uma solução para isso'', diz frei Alberto Beckhauser, doutor em teologia litúrgica e professor do Instituto Teológico Franciscano, de Petrópolis (RJ).
Na época do Descobrimento, tomados de emoção e surpresa diante da exuberância natural do Novo Mundo, os primeiros cristãos que aqui chegaram viram na flor de maracujá, planta nativa da América do Sul, o elemento representativo que faltava para a ocasião. Um deles foi Frei Vicente do Salvador, um dos maiores poetas franciscanos do Brasil.
Em 1627, numa interpretação místico-poética, o cronista descreveu a planta, associando cada parte da flor aos símbolos presentes na morte e ressurreição de Jesus Cristo. Anos depois, em 1663, outro religioso, o jesuíta Simão de Vasconcelos, também poeta e cronista, fez a mesma associação, num texto de rara poesia, publicado em ''Crônicas da Companhia de Jesus''. O trabalho de Frei Vicente só seria publicado em 1887, por iniciativa do historiador João Capistrano de Abreu.
Este era um pensamento muito popular em 1600, relacionava-se diretamente com a idéia de que aqui era mesmo o ''paraíso'', onde até a dolorosa Paixão do filho de Deus foi transformada em flor. Teria começado com o Papa Paulo V (1605-1621). Segundo relatos de historiadores e cronistas da época, ele foi tomado de profunda emoção ao receber uma flor de maracujá de presente.
Ordenou então aos cristãos que cultivassem a planta por toda a Europa, onde o maracujá é chamado ''passion fruit'' (fruto da paixão) e até hoje considerada planta ornamental exótica e de rara beleza. O nome científico - Passiflora edulis - também faz referência ao fato.
Na visão mística e delirante dos dois poetas, a flor se abre com os primeiros raios de sol, como se fosse peça de teatro: as folhas maiores, em baixo, seriam o palco; as que surgem por cima, seriam a cruz, pois se posicionam dessa forma.
Os fios roxos que circulam o centro podem ser tanto a coroa de espinhos quanto o molho de açoite aberto (Jesus teria sido açoitado enquanto carregava a cruz até o Calvário). Do centro deste ''palco'' - chamado pavilhão, molho ou coroa pelos poetas - saem os pestíolos, que de tão brancos, redondos e perfeitos foram associados às colunas de mármore do templo onde Jesus foi julgado e condenado.
E, na ponta delas, ''bolas ovaladas'' cobertas de pólen, um pó rubro como o sangue derramado na cruz, que ao ser tocado deixa o desenho das chagas de Cristo impresso nos dedos. Esta construção foi vista como uma alegoria perfeita da crucificação. Sobre as bolas, existem três pequenos cravos, que parecem os que prenderam o filho de Deus à sua cruz.
O mistério da ressurreição estaria representado pelo comportamento da flor, que se fecha sempre que o sol se põe, para novamente se abrir na manhã seguinte. E, apesar de dar frutos durante todo o ano, a época da Páscoa coincide com a fase da maior florada da planta.
Essa simbologia se perdeu no tempo, embora o nome ''Flor da Paixão'' continue associado à fruta, gerando as mais variadas e surpreendentes explicações. Beckhauser diz que, embora essa simbologia não tenha se popularizado, seria interessante lançá-la na liturgia, como uma contribuição tropical ao ritual de renascimento e renovação celebrado na Páscoa. ''É a primeira análise feita por brasileiros'', justifica.