A juíza Ana Sylvia Lorenzi Pereira, 41, vive um dilema com as duas filhas. A mais velha, Isadora, de 7 anos, já pediu um celular de presente e recebeu um "não". "Ela vê meninas da idade dela, ou até mais novas, com celular. Mas eu tenho muito medo do conteúdo ao qual as crianças ficam expostas", diz.
Já com a mais nova, Catarina, de 2 anos, o celular é liberado sempre que é preciso "um pouco de paz". "Quando saímos para jantar, por exemplo, ela não fica quieta na cadeira. São poucos os restaurantes com brinquedoteca. O jeito é entretê-la com o celular, mas neste caso eu escolho o conteúdo", diz ela, que afirma ter feito o mesmo com a mais velha. "Conforme elas crescem, vou tirando o celular. Até onde eu puder."
O interesse infantil pelo celular não é um problema só para as famílias. Atrapalha também a indústria de brinquedos. Nos últimos três anos, o faturamento do setor ficou estacionado em R$ 9,7 bilhões, descontada a inflação. "O desejo das crianças pelo celular existe. O descontrole dos pais no tempo que os filhos usam é uma concorrência grande", diz Synesio Costa, presidente da Abrinq (Associação Brasileira da Indústria de Brinquedos).
Na Trocafy, especializada em smartphones seminovos, houve aumento de 30% nas vendas entre 30 de setembro e 6 de outubro, em comparação ao mesmo período do ano passado. A empresa diz que a alta também pode estar relacionada ao lançamento da nova versão do iPhone em setembro, evento anual que sempre gera trocas. Mas no período pré Dia das Crianças de 2023, por exemplo, a alta sobre a data de 2022 foi menor, 12%.
Para este Dia das Crianças, a Abrinq lançou uma campanha nas mídias sociais, assinada pela agência DPZ, para mostrar aos pais que os filhos devem guardar boas recordações das suas brincadeiras da infância -e não do seu tempo de tela. A data é a mais importante para o setor de brinquedos no ano, respondendo por 35% das vendas, à frente do Natal, que representa 30%.
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O setor reagiu ao interesse dos pequenos pelas telas, levando campanhas e lançamentos de brinquedos para a mídia digital e redes sociais, inclusive com a contratação de influencers, diz Costa. Até o fim do ano, a expectativa da Abrinq é que a indústria avance para um faturamento de R$ 10 bilhões.
Para além do celular, o executivo lista como problemas para os fabricantes a concorrência de brinquedos importados não certificados ("Um tsunami chinês", diz) e a redução na taxa de natalidade.
"Nossa saída está no aumento do consumo de brinquedos per capita", afirma. No Brasil, este índice está em 11 ao ano, uma alta em relação aos 6 brinquedos por criança de 2010. Um dos motivos para o avanço está no número de casais separados com filhos, diz, já que cada pai e mãe dão brinquedos diferentes. "Temos espaço para crescer. Na Inglaterra, por exemplo, o índice de brinquedos per capita é de 38."
Levantamento da filial brasileira da argentina Kids Corp., uma martech (empresa de marketing que oferece soluções em tecnologia), apontou o smartphone como o presente preferido de crianças e adolescentes entre 6 e 18 anos. No Dia das Crianças deste ano, 34% querem ganhar um celular, fatia maior do que a do ano passado (25%). A opção de dinheiro ou vale presente também subiu na preferência no último ano (de 18% para 25%), empatada com roupa ou tênis (de 17% para 25%).
Apenas entre as crianças de 3 a 5 anos o celular perde a primazia: a preferência de 33% dessa faixa etária é por carrinhos de controle remoto; 28% querem bonecas; 26% querem bicicleta, patinete ou patins; enquanto outros 26% querem blocos de construção. Ainda assim, 17% dos mais novos preferem celular.
O levantamento online, com respostas múltiplas e realizado com o consentimento dos pais, foi feito com 601 crianças e adolescentes. Da amostra, 51% são meninas e 49% são meninos, sendo 36% das classes A e B e 64% da C. Do total, 19% têm entre 3 e 5 anos, 43% entre 6 e 12 anos e 38% entre 13 e 18 anos.
Meninas querem mais cosméticos que bonecas, diz levantamento
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"O problema não é dar o celular, é gerenciar o tempo e o conteúdo", diz Karine Karam, professora de comportamento do consumidor e pesquisa de mercado da ESPM (Escola Superior de Propaganda e Marketing).
Para além dos riscos de exposição da própria imagem, como pedofilia e pornografia infantil, ela destaca que crianças e adolescentes ainda não têm maturidade para entenderem determinados assuntos, que chegam a eles com opiniões enviesadas -uma situação que pode gerar medo, preconceito ou insegurança.
Um exemplo é o conteúdo postado nas redes sociais, em especial no Instagram, diz. "Quando você se compara a uma imagem idealizada, muitas vezes inalcançável, você pode começar a se sentir inadequado", diz ela, lembrando estudos sobre sintomas de depressão e ansiedade associados ao consumo de redes sociais.
"Esse consumo também leva a uma 'adultização' da criança", afirma. "Meninas estão fazendo skincare". O levantamento da Kids Corp., por sinal, apontou que, entre as garotas, 24% preferem cosméticos, maquiagem ou perfume de presente no Dia das Crianças, enquanto 22% responderam bonecas.
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Celular serve para monitorar à distância
A especialista destaca que muitos pais dão celulares aos filhos como forma de monitorá-los, e não simplesmente para oferecer entretenimento digital. "Nos Estados Unidos, 42% das crianças até 10 anos tem o próprio smartphone. Entre os pais, 25% disseram que se sentem mais tranquilos sabendo que podem acessar o filho remotamente", diz Karine, citando os dados de um estudo da instituição americana de pesquisas Pew Research, divulgado no início deste ano.
Algumas mães e pais no Brasil sentem o mesmo. A dentista Joelma Wooley, 49, deu celular para o filho Lorenzo quando ele tinha 11 anos, depois que o motorista que iria buscá-lo na aula de inglês bateu o carro e não pode encontrá-lo. "Eu não tinha como avisar meu filho", diz ela. Hoje, aos 13, Lorenzo já pega metrô sozinho e a mãe consegue rastreá-lo a distância.
Os pais mantêm outros cuidados. "A escola dele não permite alunos com celular na sala e nós controlamos o tempo dos jogos online", diz. Mas o melhor é que o filho adora futebol, diz ela: não perde a chance de jogar com os amigos do condomínio.
A nutricionista e psicanalista Natália Vignoli, 40, deu celular para a filha Leticia, hoje com 10 anos, depois da separação. "Nas férias, ficamos 15 dias longe uma da outra, por conta da guarda compartilhada", diz ela, que acabou tirando o celular devido aos riscos.
"As crianças vão perdendo a habilidade de lidar com o tédio", afirma. "Eu brincava até com caixa de papelão quando pequena. Hoje as crianças perderam a capacidade desse lugar criativo da brincadeira", diz Natália, que discute com o pai de Letícia a possibilidade de voltar com o aparelho, mas com limite de tempo de uso.
Já a gerente de trade marketing Beatriz de Godoy, 38, deu celular para o filho Felipe, 9, e a filha caçula, Bianca, 7, que costumavam pegar os aparelhos dela e do marido para jogarem online com os amigos.
"Mas o limite para cada um é de uma hora por dia", afirma. "Mais do que isso, eles começam a ficar irritadiços, respondões e impacientes". Ambos têm WhatsApp. "Sempre pego o celular para conferir as mensagens, saber do que estão falando. Já tive que corrigir minha filha por figurinhas inapropriadas."
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