As mudanças climáticas tornaram 30 vezes mais provável que a seca extrema que atingiu a amazônia de junho a novembro de 2023 acontecesse. O fenômeno El Niño, que normalmente provoca a falta de chuvas na região, foi um fator menos importante.
As conclusões são de uma análise divulgada nesta quarta-feira (24) pelo WWA (World Weather Attribution), grupo de cientistas especializados na chamada ciência da atribuição, que estuda eventos climáticos.
Os estudos de atribuição, com base em modelos climáticos, comparam a probabilidade de ocorrência de um evento no mundo atual -ou seja, na presença da crise climática, já 1,2°C mais quente- e com o clima anterior à Revolução Industrial, sem o aumento da temperatura provocado pela ação humana.
Impulsionada pela falta de chuvas e as altas temperaturas, a Bacia Amazônica ainda sofre os reflexos da seca histórica que atingiu a região no último ano, afetando milhões de pessoas.
Alguns rios chegaram a atingir os níveis mais baixos em mais de 120 anos, incêndios florestais se espalharam em meio à vegetação seca, houve interrupção na produção de energia e mais de 150 botos morreram devido ao calor.
As comunidades ribeirinhas foram as mais impactadas, sofrendo com o isolamento provocado pela dificuldade de navegação, falta de peixes, impacto da seca nas lavouras, problemas de saúde, perda de renda e escassez de água potável.
No estudo, os pesquisadores investigaram dois parâmetros comumente usados: a seca meteorológica, que considera a baixa precipitação, e a seca agrícola, que também leva em conta a evapotranspiração (evaporação da água das plantas e do solo impulsionada pelas altas temperaturas) e que reflete melhor os impactos humanos da seca.
Os resultados da modelagem estatística mostraram que o El Niño e as mudanças climáticas tiveram uma influência semelhante na redução da quantidade de chuva na região. Apesar disso, as altas temperaturas, responsáveis pela forte tendência de seca, foram impulsionadas quase que inteiramente pelas mudanças climáticas.
Assim, embora o El Niño tenha piorado a seca, as mudanças climáticas foram o principal fator para o cenário extremo da amazônia em 2023.
"À medida que a seca na amazônia piorava em 2023, muitas pessoas apontaram o El Niño para explicar o evento", diz Ben Clarke, pesquisador do Instituto Grantham, voltado às mudanças climáticas e ao meio ambiente, do Imperial College London, um dos responsáveis pelo estudo.
"Embora o El Niño tenha levado a níveis ainda mais baixos de chuva, nosso estudo mostra que as mudanças climáticas são o principal impulsionador da seca por meio de sua influência nas temperaturas mais altas", afirma. "Com cada fração de grau de aquecimento causado pela queima de combustíveis fósseis, o risco de seca na amazônia continuará aumentando, independentemente do El Niño."
Segundo os pesquisadores, a mudança climática tornou a probabilidade de ocorrer uma seca meteorológica como a do ano passado 10 vezes maior, enquanto a seca agrícola se tornou cerca de 30 vezes mais provável.
Analisando os dados históricos, foi constatado que o evento ocorrido no ano passado é de nível excepcional e que a precipitação na amazônia de junho a novembro está diminuindo à medida que o clima se aquece.
No cenário atual, com 1,2°C de aquecimento, pode-se esperar que esses níveis de falta de chuva ocorram a cada 100 anos, enquanto secas agrícolas semelhantes (com baixa precipitação e alta evapotranspiração) podem acontecer a cada 50 anos aproximadamente.
Contudo, se os seres humanos não reduzirem de forma drástica a queima de combustíveis fósseis e o aquecimento global atingir 2°C, períodos semelhantes de precipitação extremamente baixa poderão ocorrer a cada 33 anos. Secas agrícolas semelhantes poderão acontecer uma vez a cada 13 anos.
O estudo aponta, ainda, que um histórico de desmatamento para agricultura e expansão urbana agravou a seca na região. A remoção e degradação da vegetação reduzem a capacidade do solo de reter água, tornando muitas regiões da amazônia particularmente suscetíveis à seca.
Regina Rodrigues, professora de oceanografia física e clima da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), que também fez parte do estudo, afirma que o fator que torna a seca de 2023 sem precedentes é que ela atingiu toda a bacia simultaneamente.
"As comunidades, especialmente na amazônia brasileira, dependem dos rios para transporte e, geralmente, no passado, nós tínhamos secas por fenômenos como o El Niño concentradas em apenas uma parte da amazônia -ou no sul ou no norte, em momentos diferentes. Então os rios não atingiam níveis tão baixos", explica. "Mas com o nível dos rios tão baixos [como estavam no ano passado] todas as comunidades acabam sendo afetadas."
Rodrigues diz também que a floresta amazônica é crucial para o combate ao aquecimento global. "Se protegermos a floresta, ela continuará agindo como o maior sumidouro de carbono terrestre do mundo. Mas, se permitirmos que as emissões induzidas pelo homem e o desmatamento a levem ao ponto de não retorno, ela liberará grandes quantidades de dióxido de carbono, complicando ainda mais a nossa luta contra as mudanças climáticas."
O ponto de não retorno é o estado em que o desmatamento e a degradação da floresta chegam a níveis tão altos que a região passa a emitir mais carbono para a atmosfera do que consegue absorver.
A pesquisadora da UFSC explica ainda que essa seca atingiu as partes noroeste e norte da amazônia, que são mais vulneráveis a secas, já que esse fenômeno não é tão frequente por lá quanto na região sul do bioma.
"Isso é particularmente problemático para aspectos do ponto de não retorno, porque se começarmos a ter essas secas fortes nessa região mais intocada, a floresta pode não ser capaz de lidar com isso", afirma.
Com o possível cenário de intensificação da seca na região até que seja alcançada a neutralidade das emissões de gases de efeito estufa, os cientistas ressaltam que os governos e as comunidades devem se preparar para secas mais frequentes.
O chamado estudo de atribuição rápida feito pela WWA se baseia em métodos revisados por pares. Assim, é possível produzir análises confiáveis em um menor espaço de tempo do que um estudo formal, que precisa passar pela liturgia da publicação em revistas científicas.