Sufocado por uma incomum combinação de seca, calor e fumaça de queimadas generalizadas, o Brasil tem horizonte igualmente esfumaçado quando o assunto é a sua capacidade de medir e reagir aos níveis críticos de qualidade do ar.
Tomando como base modelos internacionais, especialistas afirmam que municípios, estados e governo federal estão muito aquém em três passos básicos para lidar com a crise: a adequação dos parâmetros de qualidade do ar, o monitoramento em todas as regiões habitadas e a adoção de ações padronizadas para proteger a população.
Para ser saudável, o ar não deve possuir concentrações elevadas de poluentes, como materiais particulados e gases. O índice de qualidade do ar é representado por valores numéricos que começam em zero, para uma condição muito boa, e passam de 200, para uma situação considerada péssima, segundo critérios adotados pela OMS (Organização Mundial da Saúde).
Na tarde desta quinta (12), o indicador de São Paulo era 111, dentro da classificação "ruim" -de 81 a 120-, dando à capital paulista o posto de 11º cidade com o pior situação entre as monitoradas pela plataforma suíça IQAir.
Uma situação como a registrada na cidade significa que o paulistano inala, por metro cúbico de ar ao longo de 24 horas, algo entre 50 e 75 miligramas de material particulado de 2,5 micrômetros. Esse é um dos componentes do índice mais perigosos, pois é pequeno o suficiente para ser absorvido pelo organismo e causar danos sistêmicos à saúde.
Mas se considerado o padrão adotado no Brasil, essa concentração do poluente só atingiria o primeiro dos três níveis críticos -atenção, alerta e emergência- ao alcançar o valor de 125. Nesse nível, considerado péssimo, toda a população pode apresentar sérios sintomas respiratórios e cardíacos, com aumento da mortalidade de grupos sensíveis.
No mesmo nível ao registrado por São Paulo nesta quinta, cidades do Reino Unido, Espanha e França adotariam medidas como a restrição de veículos nas ruas de regiões centrais, suspensão de aulas e outras atividades produtivas para evitar a exposição de seus cidadãos ao risco, afirma a médica Evangelina Araújo, diretora do Instituto Ar.
Esse tipo de protocolo, porem, não existe de forma padronizada no Brasil.
Nos mesmos países citados, com o indicador chegando a 41 -qualidade do ar moderada- comunicados sobre cuidados passariam a ser divulgados nos canais oficiais e grandes veículos de comunicação, afirma a médica.
"O mais absurdo é que aqui ainda não comunicaram a população e eles [municípios, estados e União]- não o fazem porque não querem assumir que a situação é crítica", diz Araújo.
Protocolos emergenciais deveriam estar em prática para grupos com maior risco de adoecer, como crianças e idosos, reforça o médico patologista Paulo Saldiva. "Crianças deveriam usar máscaras para ir à escola", comenta.
Estudioso dos impactos da poluição na saúde há 45 anos, Saldiva diz nunca ter acompanhado uma combinação tão severa de seca, calor e poluição em São Paulo. "É a tempestade perfeita", afirma.
O cenário em São Paulo é ruim, mas ao menos é conhecido, graças à boa estrutura de monitoramento da Cetesb, o órgão estadual responsável pela aferição. Situação potencialmente pior é a de estados do Norte e Centro-Oeste, onde estão concentradas as queimadas e a presença de estações de medição é precária e até mesmo inexistente.
Onze estados brasileiros não monitoram o ar, segundo relatório produzido em 2023 pelo Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima. São eles: Alagoas, Amapá, Amazonas, Goiás, Paraíba, Piauí, Rio Grande do Norte, Rondônia, Roraima, Sergipe e Tocantins. A reportagem questionou todos sobre a situação, mas não recebeu resposta até a publicação deste texto.
Existem atualmente 245 estações de monitoramento do ar no Brasil, a maior parte concentrada nas regiões Sudeste e Sul. Para cobrir regiões deficitárias, seriam necessárias pelo menos mais 46, segundo David Tsai, gerente de projetos do Iema (Instituto de Energia e Meio Ambiente).
No escuro, prefeitos e governadores nem sequer possuem parâmetros adequados para reagir à crise, diz Tsai. "O fato é que nós não temos um parâmetro concreto para cobrir estatisticamente a população para dar o comando de reação para uma situação de emergência", afirma.
Isso não quer dizer que com tais dados em mãos esses gestores adotariam restrições às atividades econômicas, pondera Evangelina Araújo, do Instituto Ar. Ela aponta os gestores públicos estaduais como principais opositores à atualização dos parâmetros que resultariam na adoção de contingências.
Destacando que a adoção de protocolos cabe aos estados, a gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) reconhece o atraso do país no setor e garante que medidas adotadas a partir deste ano têm potencial para mudar o cenário.
Principal medida adotada, uma atualização dos parâmetros de qualidade aprovada em julho pelo Conselho Nacional do Meio Ambiente tornará a regra mais rigorosa a partir de 2025.
Estados que atrelam o licenciamento ambiental à emissão de poluentes, por exemplo, serão forçados a adotar medidas para melhorar as condições do ar para receberem novas indústrias, afirma Adalberto Maluf, secretário nacional de Meio Ambiente Urbano e Qualidade.
O governo também Lula promete entregar até o início do próximo ano um guia técnico para monitoramento da qualidade do ar, tornar mais rígidos os parâmetros dos níveis críticos, além de investir R$ 120 milhões para 11 estações de medição em estados desprovidos dessa tecnologia.