Um aplicativo, denominado "Simulador de Escravidão", foi retirado do ar pelo Google Play, nesta quarta-feira (24), após inúmeras denúncias recebidas de usuários. De acordo com a própria descrição fornecida pela idealizadora do projeto - a empresa Magnus Games -, o espaço é destinado para simular o "comércio de escravos" e tinha como imagem de capa um homem negro ao lado de um senhor de engenho.
O aplicativo - que contava com a avaliação dos usuários de 3,9 estrelas, em uma escala de 1 a 5 dentro da plataforma de jogos do Google - registrava diversos comentários acerca do material, com alguns, inclusive, pedindo a disponibilização de novas atualizações, como "chicotadas em escravos" e "mais opções de tortura".
O Simulador de Escravidão também possuía opções que levavam em conta as capacidades físicas dos escravizados, como a lucratividade que davam ao trabalharem em plantações, ou em atividades de construção, por exemplo.
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Após denúncias, o Google Play tirou o aplicativo do ar. A reportagem entrou em contato com a empresa de tecnologia que alegou que o "Google tem um conjunto robusto de políticas que visam manter os usuários seguros e que devem ser seguidas por todos os desenvolvedores".
A nota oficial ainda cita que a big tech não tolera aplicativos que violem os direitos humanos. "Não permitimos apps que promovam violência ou incitem ódio contra indivíduos ou grupos com base em raça ou origem étnica, ou que retratem ou promovam violência gratuita ou outras atividades perigosas. Qualquer pessoa que acredite ter encontrado um aplicativo que esteja em desacordo com as nossas regras pode fazer uma denúncia. Quando identificamos uma violação de política, tomamos as ações devidas."
A reportagem também entrou em contato com a empresa que projetou o jogo virtual, mas não foi respondida até o fechamento deste texto.
Racismo recreativo
Para a advogada Larissa Ferraz, vice-presidente da Comissão de Igualdade Racial da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de Londrina, é "inaceitável atitudes como essa em pleno século XXI". Segundo ela, a empresa e seus administradores devem ser responsabilizados pela "apologia e a desumanização de corpos negros".
"É um jogo que faz apologia à violência aos nossos ancestrais escravizados. A gente percebe que tem o racismo recrativo de maneira virtual. Agora, com a legislação que foi alterada, da Lei 14.532, tem esse ponto de injúria racial, mesmo que feito de maneira virtual", avalia a advogada.
Para Ferraz as plataformas envolvidas devem ser responsabilizadas, pois não há dúvidas de que se trata de crimes raciais.
"O Direito Penal vai atrás da Pessoa Jurídica por trás dessas plataformas para serem responsabilizados. Porque fazer isso é inaceitável nos dias atuais. Pedimos que todas as pessoas denunciem essas plataformas", reforça.
'Dói na alma'
Sandra Mara Aguillera, pesquisadora da UEL (Universidade Estadual de Londrina) e membro do Coletivo Black Divas - que atua no combate ao racismo e conta com a participação de diversas profissionais como psicólogas, artistas e pesquisadoras - abomina o conteúdo do aplicativo, afirmando que ações como essa "doem na alma". Para ela, o racismo pode ser visto em diversos aspectos na sociedade.
"O racismo não se limita apenas a atuar nas casas das 'patroas', ele age nas empresas, supermercados, faculdades, ponto de ônibus, lojas, ubers, numa disputa eleitoral, numa faculdade. Age nas escolas, creches. O racismo age intensamente e sistemicamente em qualquer lugar", diz a pesquisadora.
De acordo com Aguillera, jogos como esse, até então disponibilizados para qualquer pessoa no Google Play, podem influenciar crianças a darem sequência às correntes racistas que ainda perduram no país.
"De repente, a criança se vê em um 'jogo da escravidão', com massacre, negros açoitados, escravizados... Os danos são terríveis. Sabemos que parte da evasão escolar se dá por conta do racismo estrutural e precisamos ir além do que temos feito enquanto toda uma sociedade. Basta de sarcasmo, agressões, violências verbais, físicas, perseguições e discursos de ódio contra a população negra. É urgente que o antirracismo aconteça e que o racismo e todas as suas formas precisam ser firmemente combatidos com as ações efetivas e contundentes", conclui Aguillera.
*Sob supervisão de Fernanda Circhia