Primeira mulher a integrar o Superior Tribunal de Justiça. Com o peso e o orgulho da representação feminina no Judiciário, Eliana Calmon foi escolhida em 1999 para compor a Corte da Cidadania. "Era meu dever bem representar a mulher brasileira e com esse empenho abrir as portas da Corte para outras mulheres." Com a excelência que o cargo exige, permaneceu no STJ por 14 anos – de 1999 a 2013 –, em experiência que descreve como riquíssima, "como profissional, cidadã e como mulher".
Eliana Calmon iniciou a carreira de juíza em 1979. Foi também procuradora da República e desembargadora Federal. Ocupou por dois anos o cargo de corregedora nacional do CNJ, quando causou polêmica ao lutar pela investigação contra magistrados, os "bandidos de toga". No tribunal Superior, pediu aposentadoria um ano antes de ser atingida pela compulsória. Em 2014, candidatou-se ao Senado. Hoje, atua como advogada em escritório próprio, em Brasília. O segredo para uma carreira de sucesso? Não deu ouvidos ao machismo.
"Eu segui meu caminho e ninguém foi capaz de barrar os meus passos." - disse a Ministra.
Mulher na Corte
Quando se candidatou à vaga para o STJ, ouvia dizer que os ministros não queriam, ainda, uma mulher compondo o tribunal. Chegou a escutar que sua candidatura era uma temeridade, já que a vaga era para homem, ao que prontamente respondeu: "mostre-me na Constituição a divisão de vagas para homens e mulheres".
"Você é teimosa e vai se arrepender", ouviu, mas sem dar ouvidos. Outros ministros estavam lá para apoiá-la: o presidente da Corte à época Antônio de Pádua Ribeiro e sua mulher, Ives Glória Ribeiro; Sálvio de Figueiredo; Adhemar Maciel; José de Jesus; Fontes de Alencar, dentre outros.
O único receio ao se candidatar para o tribunal, afirma, não era por ser mulher, mas pelo fato de ser crítica do Judiciário, posição que a deixava "em desconforto com alguns ministros que se sentiam ofendidos com as críticas sobre mordomias, filhotisimo, nepotismo e outras mazelas".
Mas ela entrou na primeira lista e aí começou a batalha política – a mais difícil, segundo ela.
"Juíza de carreira, atravessei a vida dentro do gabinete trabalhando e longe da vida política e dos políticos. No Tribunal Eleitoral da Bahia, onde estive por dois anos, contrariei os caciques baianos, inclusive o maior deles, Antonio Carlos Magalhães. Me vali de algumas amizades do Judiciário e que funcionaram como pontes aos políticos, sendo certo que eu tinha uma grande vantagem: à época, os movimentos feministas exigiam do presidente da República a nomeação de mulheres para os Tribunais Superiores. FHC, então presidente, chegou a assinar uma carta de intenções nesse sentido. Alavancada pelas mulheres e apoiada por alguns poucos políticos, valeu-me na última hora a minha banalidade, ao entrar Antonio Carlos Magalhães para dizer: 'o meu candidato não entrou na lista, mas meu compromisso é com a Bahia. Vou apoiar a Dra. Eliana Calmon'."
Luta feminina
Em junho de 1999, Calmon foi finalmente empossada no cargo de ministra do STJ. Ela conta que foi ovacionada por centenas de mulheres que, com faixas, identificavam-se como pertencentes a grupos de militância feminina.
"Tenho, ainda hoje, na memória a imagem que me fez assumir a responsabilidade de desempenhar com empenho total a minha função de ministra. Afinal era meu dever bem representar a mulher brasileira e com esse empenho abrir as portas da Corte para outras mulheres."
Ao contar sobre sua passagem pela Corte da Cidadania, Eliana faz questão de destacar que acredita ser o STJ o tribunal mais importante do país para o cidadão nas tratativas do dia a dia.
"O Supremo é a cúpula do Poder Judiciário, mas é um Tribunal onde se resolvem as questões constitucionais e políticas, diferentemente do que acontece no STJ, Tribunal que acompanha a vida civil diuturna dos seus jurisdicionados, direcionando os comportamentos sociais e jurídicos. (...) O STJ é um tribunal fantástico, com uma estrutura muito boa, onde os seus ministros são cercados de todos os meios necessários a um trabalho de qualidade."
Com a experiência obtida antes de integrar a Corte, não teve dificuldade em trabalhar com a matéria que lhe coube: Direito Público.
Foro especial
Ao tomar posse, foi lotada na 2ª turma e de imediato passou a compor a Corte Especial. Sendo a última trincheira do STJ, era para lá que iam os processos de autoridades com foro privilegiado, como governadores, desembargadores e conselheiros dos Tribunais de Contas estaduais.
"Ali descobri que o foro especial não funciona. Não por culpa exclusiva dos julgadores, mas em razão do rito procedimental estabelecido, o qual é demasiadamente longo. Em relação aos governadores estaduais, nunca vi uma denúncia ser recebida, porque para tanto era necessária a autorização da Assembleia Legislativa, a qual nunca autorizou."
Eliana destaca que inúmeros projetos de lei foram enviados ao Congresso Nacional, propondo a mudança de rito, mas nada foi avante. A situação ficou ainda pior, aponta a ministra, quando o STF aboliu a súmula 394. Sem a súmula, em caso de perda de função, terminava também a competência especial.
"Em termos práticos, em um processo que se desenvolveu todo no STJ, ao perceber o réu que será condenado, este aposenta-se, ou renuncia ao cargo que lhe garante o foro por prerrogativa de função, e seu processo criminal será direcionado ao juízo de 1º grau, onde começa tudo novamente."
"O STJ já estava pronto para receber uma mulher"
Quando ingressou na Corte, a ministra afirma não ter sofrido preconceito algum – acredita que a Corte já estava pronta para ter uma mulher em sua composição.
"De mais a mais, eu estava tão ocupada e tão empenhada em bem desempenhar as minhas funções que não tive tempo de dar trela a preconceitos miúdos ou brincadeirinhas de imaturos machistas, pela irrelevância institucional desse procedimento. Na outra ponta tive amigos bons e leais, ministros que me orgulhavam de ser colega e contemporânea."
Ela aponta que a sociedade brasileira ainda é machista e que há, eventualmente, episódios desagradáveis, mas que são cada vez mais raros.
"De qualquer sorte, quero aqui fazer uma advertência: muitas vezes o preconceito está na mulher, que se sente discriminada. A partir do momento em que a mulher adquire postura madura e responsável, ciente e consciente do seu papel de mulher profissional, o preconceito desaparece."
"É preciso que a mulher, em seu ambiente de trabalho, se porte como mulher e não como fêmea", adverte a ministra. Ela afirma que é preciso consciência de que, na igualdade, os direitos e obrigações sãos iguais, "por isso mesmo deve pagar as suas contas e não se prevalecer de ser sexo frágil".
"No desempenho das atividades não tem de dividir melhor ou pior trabalho, deve fazer o que lhe couber em igualdade de condições e, por fim, ser discreta na sua vida pessoal e afetiva. Respeito não é gratuito, portanto, faça-se respeitar pela postura, inteligência, competência e força de trabalho. Quem fala tudo isto é uma mulher de 72 anos, mas que já foi jovem, magra, dos cabelos compridos, com a beleza da mocidade e que nunca se deu mal em não dar ouvidos a machismo e preconceito: eu segui meu caminho e ninguém foi capaz de barrar os meus passos."
Fonte: Migalhas.