Falando de Literatura

Desafabo de um irmão (Alagamento) - por Marli Boldori

06 jun 2024 às 17:55

Desabafo de um irmão é um crônica da poeta e escritora Marli Boldori, da União da Vitória.

Com sensibilidade, a autora trabalha o psicológico do personagem. Suas emoções.


Naquela vã ilusão de que tudo vai durar para sempre, em um piscar de olhos tudo mudou, tudo passou, foi como uma brisa que tocou em nossos cabelos e fez tudo mudar.

E por um momento de distração, a beleza das flores foi morta, o cantar dos pássaros foi silenciado, a morte pairou no ar.

Ao meio dia o céu estava escuro, e o sol deu lugar para as nuvens carregadas de chuvas volumosas e impiedosas.

Fomos impedidos de voltar para as nossas casas, e lá ficaram nossas coisas, nossos bens, nossas vidas, nossos animais, não se trata apenas de estarmos bem e com saúde, mas é também sobre isso. Mas, foram anos de luta para conquistarmos o que tínhamos, alguns mais, outros menos, mas tínhamos orgulho das nossas conquistas, e hoje, elas não existem mais.

Estão enlameadas, encharcadas por nossas lágrimas, e não mais existem.

Nossas fotos penduradas, nossas lembranças, nossas preces de mãos dadas em torno da mesa não mais existem.

E como será amanhã, depois, e no futuro? Não sabemos.

Sinto que o recomeço é todos os dias, e há uma força invisível, que está nos acompanhando. Por muitas vezes fecho meus olhos, por alguns instantes consigo dormir e esquecer, mas logo a verdade bate em minha mente e me faz acordar, e me faz reagir.

À noite, saio um pouco do abrigo, estamos juntos, em um ginásio. A água suja, traz o cheiro ruim de um passado que vamos deixar para trás. Por uma distração, fecho os olhos e consigo ver as ruas, as crianças correndo, bola rolando, risos, vizinhos tomando chimarrão na calçada, as cores das casas, o cheiro do bolo, o café recém passado, lágrimas escorrem. Enxugo-as, preciso ser forte.

Meus animais, minha plantação, o sustento da minha família, tudo se foi. Questão de segundos, incríveis segundos.

Olho para o céu, algumas gotas caem em meu rosto confundindo-se com minhas lágrimas. Mais uma madrugada chuvosa.

Não há como explicar, não há como entender, apenas seguir.

Seguir unido, seguir orando, seguir firme no propósito de recomeçar.

Coloco a mão no bolso, abro a foto que consegui trazer comigo. Está molhada, minha família, suspiro.

Não tenho muita ideia de onde estão todos, meus pais, tios, e minha pequena Isabela. Nós éramos felizes, ou talvez ainda seremos novamente. Não sei, apenas peço a Deus uma segunda chance, é possível que eu seja atendido? E se Deus, por um segundo, me permitir acordar desse pesadelo?

Estamos todos sensíveis, estamos perdidos, com medo, e precisando muito mais dos outros do que antes.

A verdade, é que nunca precisamos tanto uns dos outros como agora.

Na água, roupas vão para longe, nos escombros, o que sobrou de uma casa, que antes tinha vida, que antes tinha música, tinha cor e cheiro. Hoje são escombros, sem vida, sem esperança.

Há épocas em que é difícil acreditar em um recomeço, e justamente nesses momentos sinto uma força aqui dentro que me enche o peito e faz eu querer continuar mesmo tendo apenas uma foto molhada em minhas mãos.

A manhã desponta na curva dos pampas, de longe avisto um comboio, a ajuda está a caminho e, com ela, posso ver vários anjos, do Norte, nordeste, sudeste, centro-oeste, aqui do sul. Mãos amigas que nos auxiliam, que nos alimentam e que matam a nossa sede, nos acolhem, que nos abraçam, que nos adotam como irmãos. E hoje, ninguém solta a mão de ninguém, porque há uma única certeza, naquela curva dos pampas, onde desponta o comboio com comida e mantimentos, a esperança se faz presente e renasce.

Crônica de Marli Andrucho Boldori - acadêmica da AVIPAF, Cadeira

Marli é autora do livro "A Magia do Amor", a venda na Amazon.


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