Falando de Literatura

Anthony Hopkins: Um pai que toca o coração

26 abr 2021 às 12:31

Texto de Virgilio Almansur

Tony, como gosta de ser chamado, tornou-se ontem o ator mais idoso a receber um Oscar. Bastante contida, a 93a. premiação soube por bem entender o momento e Anthony Hopkins contribuiu com a ausência. Logo após seu nome ser escolhido, a cerimônia se encerrou. Recado dado... Mais um está abaixo...


DE DENTRO DO ALEMÃO
O médico Alois Alzheimer, foi o primeiro a descrever a doença que leva seu nome. Isto em 1906. Ele estudou sua paciente, Auguste Deter, uma mulher bastante saudável que desenvolveu sintomas cuja proeminência era a perda progressiva de memória somada à desorientação. Outros elementos foram se juntando, como distúrbio de linguagem, que se apoiava na compreensão, e mais à frente a expressão.


Esses elementos são e estão apreensíveis na condução do filme-teatro "Meu Pai”, em que o diretor Zeller se esmera, ao fazer de Anthony Hopkins um velhinho chato e ranzinza, na degeneração que encontramos nos portadores de demência senil. Passamos o filme sob o olhar gélido que Anthony (nome do personagem) imprime. Percebemos seu distanciamento e as confusões que deixam o espectador sob suspense do início ao fim, principalmente quando nos vemos confrontados às alucinações e algumas idéias delirantes.
Há um certo compasso que se arrasta. Mas a idéia também é essa, numa locação praticamente única que conspira a favor da habilidade de todos os atores, ressaltando Olivia Colman como filha de Anthony. E mais: Hopkins, de 83 anos, empresta ao personagem o próprio nome, a própria data de nascimento e o próprio apartamento onde mora; a aura de infalibilidade que sempre o acompanhou, para então se dispor a reduzir tudo isso a nada. Não é só para grandes atores. É para os fortes. Disse-o recentemente: "... Eu não queria interpretar a confusão, mas sim a normalidade e a perversão dela: fazer café na cozinha, ligar o rádio como todos os dias, e então deparar com um estranho em minha casa, ou não mais reconhecer o lugar em que estou”. Além de burilar seu piano diariamente... Está lá!
Há uma clara denúncia de um mundo reconhecidamente estável e que de repente sucumbe. Os planos são mostrados na clave do absurdo, uma vez que a primeira fase da patolologia já se instalou. As definições de uma memória de fixação perdidas, bem como evocadas, são percebidas pelo espectador. Está ali a doença degenerativa, progressiva, haja vista que é possível imaginar que O PAI não mais se conecta a exemplo das conexões das próprias células cerebrais que estão morrendo.


Após sua única saída para uma consulta, Anthony é visto ao longe como se expressasse distância de tudo, da própria filha e da médica que fecha a porta — quando a filha se despede da neurologista, Anthony está noutro mundo. O diretor consegue trazer-nos uma espécie de morto vivo no canto da tela. O paciente não existe...


Esse caminho do elevador ao consultório dá a dimensão de menor claustrofobia que o filme imprime. Você está preso num ambiente que pode ser e pode não ser — e é lá dentro da matrix analógica que a evolução de Anthony vai se dando. Num determinado momento você intui que delira junto bem como se envolve nas alucinações. Tudo se deve à maestria de um ator que nos enleva desde o médico em O Homem Elefante, contracenando com Sir Arthur John Gielgud e o indefectível John Hurt. Um esgar, um simples olhar, coloca-nos na dinâmica empática. E essa é a busca do autor.


Tive a oportunidade de acompanhar em 2018, no Renaissance, Fulvio Stefanini como André, o original Anthony. Dirigido pelo filho, Fulvio proporcionou prazer e oportunidade ao público, presenciando-se o trabalho de um ator que tem mais de 63 anos de carreira. Vê-lo em cena foi ter percepção da história e resistência de ser ator no teatro brasileiro. As sacadas inteligentes da direção na realização do trabalho mais a composição do elenco, equipe técnica e de todos os profissionais envolvidos, nos permitiu conferir um trabalho imperdível. Mais cômico do que a adaptação do jovem Florian Zeller agora nos cinemas.


Impossível não encontrar poesia do começo ao fim em Meu Pai. Zeller é o autor da peça teatral, que transposta para o cinema, pode contar com recursos mais definidores e abrangentes. E é sua primeira vez com um longa que tem uma delicadeza impressionante. Não há exageros e a fruição é minimalista. Cadência de um autor que sabe que tem em mãos um monstro (Hopkins) e a premiada atriz Colman.


Ao 55 anos, a paciente de Alois Alzheimer faleceu. Ele fez a necropsia cerebral e encontrou todos os elementos que encontramos representados por Anthony, a partir de uma neuropatia degenerativa. Há uma experiência sensorial que invade a tela e você é invadido por ela. Essa captura incomoda e é aí que vemos o quanto estamos presos a narrativas e aos semblantes forjados.
Se você leu sobre a demência, ela ali está retratada. O declínio mental é espantoso e a dificuldade em pensar e compreender nos acompanham. Confusão durante a noite, confusão mental, delírio, desorientação, esquecimento, invenção de coisas, dificuldade de concentração, incapacidade de fazer cálculos simples, incapacidade de reconhecer coisas comuns ou perda de memória recente. Estão visíveis. Uma microscopia ampliada pelo ator sublime que sabe olhar no vazio e você vai junto...


A demência é cortante. Entra afiada no meio familiar e desestrutura um meio que pode ficar refém de estupores cognitivos. E essa delimitação aparece em algumas falas chistosas de Anthony quando passa a saber que Anne (Colman) irá morar em Paris. Ele repete várias vezes no transcorrer do filme que os franceses não conhecem o inglês. Como se comunicar? Estamos num jogo e quase podemos brincar com as peças... Um quebra-cabeça.


As impressões cognitivas dão um toque para que saibamos o quanto somos co-partícipes, uma espécie de aliados do protagonista que vai nos encurralando como supporting actors. E aí está a inteligência de Zeller, que pode contar com excelentes colaboradores na construção dos espaços mutantes e os limites entre fato e ficção, verdade e mentira — imaginação e realidade se tornando cada vez mais vagos.


Dédalo mental de Anthony; dédalos esperados à espectância. Dédalos (dê a eles) é a metáfora de um mundo labiríntico, cujas variáveis nos escapam a todos. Num mundo hiper conectado acabamos vítimas de um non sense, escrutinado do começo ao fim sob uma ária melancólica e a interpretação magistral de Hopkins. A construção visual é magnânima, closes que imprimem uma facies quase alienígena que retira o ator de um lugar comum mas sem exageros. A demência se escancara, se traduz... A luminosidade é natural e deve-se ao fotógrafo Ben Smithard. Um campeão!


Restam as edições. Yorgos Lamprinus é destaque! Consegue impor um ritmo eficiente junto ao diretor que colabora em todos os setores, coadjuvado por Christopher Hampton. Coloca-nos dentro da trama e aponta um final que surpreende pela beleza, pela sensibilidade que a devastação de um drama demencial aqui se torna mister. Palmas!!!


Eu diria que o homem que marcou com "O Silêncio dos Inocentes” levando um Oscar, dá sinais de que suas interpretações tão soberbas é marca indissociável. Começou como sombra de Lawrence Olivier em fins dos 50. Hopkins é famoso por sua preparação para seus papéis. Ele indicou em várias entrevistas que, uma vez comprometido com um projeto, ele passará por suas falas quantas vezes for necessário (algumas vezes passando de 300) até que elas soem naturais para ele, podendo assim dizê-las "sem pensar". Isso leva para um estilo quase casual de dizer as falas que camuflam a quantidade de trabalho prévio. Exatamente sem memória e sem desejo, constrói seu personagem com falas naturais que acompanham cada set. Não há como não ser captado.
Hopkins não pensa numa aposentadoria. Ótimo! Ainda o veremos! Está escolhendo roteiros...

Virgilio Almansur é médico e escritor.


Continue lendo