Falando de Literatura

A Poesia e sua função - por Isabel Furini

27 set 2024 às 11:05

Um ensaio de Isabel Furini

A POESIA E SUA FUNÇÃO

Introdução

Quando falamos de poesia precisamos entender que entramos em um campo com múltiplas visões. Alguns consideram que um poema de qualidade deve ser sofisticado; para outros, o poema revela a alma de um povo e, por isso, deve ser desprovisto de palavras inusuais e de construções complicadas.

Tive a oportunidade de ser jurado de alguns concursos e foi muito interessante perceber que cada um dos componentes das equipes (professor, jornalista, escritor, poeta, crítico literário, editor, membro de alguma Academia de Letras ou bibliotecário), tinha uma opinião formada e difícil de modificar. Alguns amam poemas com rima, mas na opinião de outros ela torna o poema limitado, pois é preciso escolher palavras pela terminação e não pelo significado.

Um grupo considerava a poesia como expressão da alma; já para outro a poesia  exige um trabalho apurado para escolher as palavras adequadas e o ângulo de visão capaz de comunicar mais sensações, emoções ou ideias em quem a lê. Causar efeito no leitor é sempre um objetivo válido, pois a literatura em prosa e a poesia têm como objetivo a comunicação, e precisam comover quem com ela tem contato.

Um poema pode ser como um café que você bebe enquanto olha pela janela do bar ou fala com amigos: descomprometido  ou alegre. Ou ainda pode ser meditativo ou saudoso, como quando colocamos um chá numa xícara fina para ser bebericado calmamente na sala de estar, enquanto ouvimos música clássica ou olhamos um álbum de fotografias antigas. Um poema pode também ser comparado ao vinho, em que há diferentes tipos: tinto, branco, rosé, espumantes ou fortificados, cada um deles variando na intensidade de cor, sabor e no teor alcoólico. A Poesia é como uma mãe, que admite diferentes gostos e estilos.

O FAZER POÉTICO

Apesar de ter nascido em Buenos Aires, só uma vez estive presente em uma palestra de Borges. Foi quando estudava filosofia, no início dos anos 70. Durante a palestra ele falou de um assunto que amava: os paradoxos de Zenon de Eleia. Borges gostava de filosofia e também do aspecto lúdico da Literatura. Ele disse, por exemplo, que “as pessoas têm o péssimo costume de morrer”.

Em Poesia, Borges gostava dos jogos linguísticos, das sutilezas, da ironia.

É preciso investir tempo para trabalhar o poema com metáforas e outros recursos de estilo. A linguagem familiar e a linguagem poética são diferentes. É preciso sensibilidade estética para trabalhar a palavra, trabalhar o imaginário e fugir dos clichês. Marcelino Freire, em uma oficina que ministrou em Curitiba há alguns anos, falou que não era bom deixar que o poema se faça sozinho. A inspiração pode ser muito boa, mas é preciso intervir e moldar o poema.

Alguns poetas pensam que  só pelo fato de conter mensagem positiva o poema é bom. Mas nem a poesia, nem o poema podem ter compromisso com a visão positiva do mundo. Entendamos: a visão positiva do mundo faz uma pessoa viver melhor e superar obstáculos, isso é verdade, mas a poesia não tem objetivo prático, não é subsidiária da positividade. Um poema pode provocar mal-estar, sensibilizar para estados de ânimos indesejáveis (tristeza, solidão, raiva), e ser um excelente poema. Cumpre a sua função que não é colocar sorrisos nos lábios do leitor, mas compartilhar uma emoção que também faz parte da subjetividade humana.

Podemos entender que a poesia, como as outras artes, tem a função de comunicar, mas não é possível se determinar o que comunicar. O mesmo acontece em Artes Plásticas. Por exemplo, o quadro “O grito” de Edvard Munch provoca diversas emoções no observador, como angústia, medo, tristeza, e, justamente essa é a sua grandeza. Também a sétima arte premia filmes que deixam o espectador confuso, deprimido ou assustado. Esse era o objetivo do diretor: provocar emoções.

Há pouco tempo, o professor e crítico literário Robson Lima, escreveu: “É interessante notar que os livros de autoajuda se valem de tudo para provarem-se úteis, enquanto a alta literatura de tudo faz para provar-se inútil.”

PARA QUE SERVE A POESIA?

E algumas pessoas declaram que “a Poesia não serve para nada”. O fazer poético não tornará uma pessoa rica e influente, mas a fará olhar o mundo de uma dimensão diferente. E se a vida humana tem algum valor, além do econômico e do social, é esse olhar o mundo de maneira diferente… o fato de ver-se, sonhar-se, projetar o próprio eu além do cárcere do espaço e do tempo, no qual estamos prisioneiros, ajudando a estender as asas, a ser mais Ser, na linguagem de Platão. 

O conhecido mito da caverna, apresenta um cenário com pessoas sentadas e acorrentadas em uma caverna. Fora tem Sol, e os passeantes (sejam humanos ou animais) projetam sombras. E os prisioneiros da caverna estão acostumados a ver somente sombras. De repente, alguém é retirado da caverna e obrigado a ver o mundo real. Quando ele volta para a caverna fala de um mundo diferente, e não é compreendido.

Alguns consideram os poetas como visionários. Os olhos dos poetas enxergam outra realidade, pois a poesia exige, em primeiro lugar, um olhar singular. O poeta olha o mundo com assombro, com espanto. Às vezes sente-se confuso, e em outras, iluminado. Quando lemos um poema, percebemos o olhar do poeta. A linguagem cotidiana não preenche os requisitos necessários para expressar os pensamentos, sentimentos, emoções, sensações, ou seja, não consegue expressar a vida subjetiva do poeta. Por isso precisa da metáfora, do jogo linguístico, do paradoxo, e de outros recursos,  para  manifestar sua maneira singular de exprimir a visão de seu próprio eu e  do mundo.

RESPIRAR POESIA

A poesia é respiração. É o inalar e o exalar do verbo na cabeça do poeta. É reveladora do ritmo mental, de seu passo (lento, rápido, agitado) e de seu olhar.

Nas palavras de Otávio Paz: “Há máquinas de rimar, mas não de poetizar. Por outro lado, há poesia sem poemas; paisagens, pessoas e fatos podem ser poéticos: são poesia sem ser poemas. Pois bem, quando a poesia acontece como uma condensação do acaso ou é uma cristalização de poderes e circunstâncias alheios à vontade criadora do poeta, estamos diante do poético.”

Aristóteles dividiu as atividades humanas em: a) teorética, busca do verdadeiro conhecimento, b) práxis (prática ou a técnica); c) Poiesis, o impulso criativo. Para Aristóteles a poesia externalizava a emoção.

O poeta, é então quem trabalha com poesia, é um artesão da palavra. Ele consegue despertar emoções, sentimentos do ouvinte ou do leitor.

O poeta deve ter apurada sensibilidade para traduzir em palavras as emoções e os sentimentos humanos. Seus poemas podem falar de amor, de solidão, de abandono, de tristeza, da vida ou da morte, mas as palavras precisam ecoar na alma do ouvinte e do leitor. Para isso o poeta precisa aprimorar a sua voz poética. Utilizar com maestria os recursos: metáforas, imagens, descrição, enumeração, ironia, paradoxos e outros. Os jogos linguísticos tornam o poema lúdico, ou seja, apresentam uma das características da Poesia e das Artes em geral: o prazer estético.

SOBRE A INSPIRAÇÃO

E qual é a força motriz da inspiração poética? No Íon, Platão afirma, que é a inspiração proporcionada por um deus. Esse diálogo só tem dois personagens: Sócrates e Íon de Éfeso, um rapsodo de Atenas que era famoso nessa época, na qual declamar poemas era uma arte muito apreciada. O rapsodo afirma que só se entusiasma e emociona quando declama os poemas de Homero.

Essa ideia da criação poética subordinada à inspiração divina é o centro dessa obra de Platão. Ele escreveu poemas em sua juventude, mas com o tempo percebeu que os poetas valorizam mais a beleza do que a verdade. Platão, como filósofo, sentiu que tinha o dever de colocar a verdade em primeiro lugar, e criticou os poetas. Mas, no livro “Íon ou da Poesia”, considera os poetas e seus intérpretes inspirados por um dom divino. Nesse diálogo, Sócrates  cita como exemplo dessa inspiração divina o poeta Tínico  de  Calcis, que era famoso por ter escrito um peã (hino cantado em honra à Apolo). Segundo Sócrates, esse foi o único trabalho de valor de Tínico, na sua opinião isso evidenciava que o poeta havia sido inspirado pelo deus Apolo.

Em Íon ou da Ilíada, o personagem Sócrates explica que assim como a pedra ímã pode atrair outros objetos de metal, a esses objetos ainda podem se aproximar outros, pois o ímã de ferro não só atrai objetos de metal, mas comunica a sua força e pode formar uma longa corrente de anéis de ferro. Para Platão, a Musa (o ímã), inspira um poeta ou literato a escrever (esse seria o primeiro anel de ferro). Um declamador ou intérprete ao ler ou declamar um poema com emoção também atrai e emociona os ouvintes. O ouvinte também se emociona (terceiro anel de ferro).

Íon confessa que muitas vezes declama e se emociona, e percebe o auditório pendente de suas palavras, sendo que ele mesmo chora quando declama as partes mais dramáticas, e consegue enxergar as pessoas na plateia também chorando.  Sócrates diz que: “isso acontece por uma possessão divina”.

Os poetas são inspirados pelas Musas ou devem trabalhar duramente até conseguir sua própria voz?  A poesia, como todas as artes, obedece a dois elementos: o dom e o treinamento. Sem o treinamento sua voz poética não é aprimorada, mas além desse treinamento é preciso de algo mais… esse olhar singular que faz ouvintes e leitores ficarem admirados, pois como afirmou Ferreira Gullar “a poesia nasce do espanto”.

Ensaio de Isabel Furini, poeta e escritora.

BIBLIOGRAFIA

ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Abril Cultural (col. Os pensadores), 1979.

PAZ, O. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

PLATON. Obras completas. Buenos Aires: Editora Aguilar, 1969

https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/Kinesis/20_KrishnamurtiJareski.pdf

Revista Pandora BrasilEdição99• Março de 2019ISSN 2175-3318

http://revistapandorabrasil.com/revista_pandora/estetica_e_filosofia_99/dirani.pd

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