No Brasil, um em cada três profissionais de saúde (33,7%) acredita que o SUS deve utilizar tratamentos contra a Covid-19 mesmo que não haja a comprovação da eficácia em pacientes.
Os dados são da quarta fase de uma pesquisa realizada pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) em parceria com a Fiocruz e a Rede Covid-19 Humanidades. Foram feitas entrevistas virtuais com 1.829 profissionais da saúde pública no Brasil, incluindo médicos, profissionais de enfermagem, agentes comunitários, fisioterapeutas, dentre outros, entre os dias 1 e 20 de março de 2021.
Na terceira etapa, a parcela de profissionais de saúde que defendia o uso de medicamentos sem comprovação de eficácia era similar (32%).
Os agentes comunitários são os que mais defendem o seu uso no SUS (40,2%), mas são seguidos pelos profissionais de enfermagem, com 34,3%, enquanto 22,2% dos médicos defendem essa posição.
A pesquisa não é representativa de toda a sociedade por não fazer uma amostra probabilística da população, mas traz alguns aspectos interessantes sobre as percepções da pandemia nessa categoria.
Pela primeira vez a pesquisa questionou a opinião dos profissionais sobre vacinação, já que nas etapas anteriores os imunizantes contra a Covid-19 ainda não estavam disponíveis.
Dois em cada três profissionais disseram acreditar que a vacinação contra Covid-19 deve ser obrigatória.
Quando os resultados são desagregados por profissão, a visão que a vacina é uma escolha individual e não deve ser obrigatória é maior entre os agentes comunitários de saúde (42,8%), em comparação com os enfermeiros (27,3%) e médicos (18,2%).
Para Gabriela Lotta, pesquisadora de administração pública e coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia da FGV, que lidera a pesquisa, surpreende a rejeição de 33% dos profissionais à obrigatoriedade das vacinas por um terço dos profissionais de saúde. "É ainda mais chocante quando pensamos nos 43% dos agentes comunitários de saúde, porque se tem uma coisa que é constantemente dita na saúde pública é como as vacinas são ferramentas importantes de controle de doenças, e são esses os profissionais que vão até as casas das famílias orientar sobre vacinas."
Lotta explica ainda que a narrativa criada no país em torno da defesa do tratamento precoce, seja pelo presidente da República, Jair Bolsonaro (sem partido), seja pelo Ministério da Saúde, pode sustentar em parte a parcela de profissionais de saúde que viam um benefício no "kit Covid".
Ainda, muitos desses profissionais receberam em seus locais de trabalho orientações para uso desses medicamentos.
Contrariamente, 87% dos participantes disseram ter sido vacinados pelo menos uma dose da vacina, o que condiz com o fato de os profissionais de saúde, principalmente os que atuam na linha de frente de combate à Covid-19, terem sido incluídos nas primeiras fases de vacinação no país.
Mesmo com as primeiras doses do imunizante, quase 9 em cada 10 profissionais da área da saúde relatam ter medo da Covid-19. Segundo o estudo, não há variação dessa percepção de acordo com a região, o que indica um sentimento generalizado de medo e insegurança por toda essa categoria em todo o país.
Nesse contexto, faz sentido que muitos dos profissionais tenham medo não apenas de se infectar, mas também de passar para seus familiares, visto que 96,6% dos entrevistados disseram conhecer algum colega com suspeita ou diagnóstico de Covid-19, e cerca de um terço (31,2%) diz já ter sido infectado.
Segundo dados do boletim epidemiológico do Ministério da Saúde do dia 4 de março de 2021, foram notificados mais de 144 mil casos de suspeita de Covid-19 entre profissionais de saúde em todo o país, dos quais 39 mil foram confirmados. De longe, a profissão mais suscetível à Covid-19 é a de enfermagem, com o maior registro de casos confirmados -cerca de 30%, ou quase 12 mil casos.
Além de serem os mais vulneráveis para contrair a doença, os profissionais de enfermagem são também os que relatam sofrer mais assédio moral durante a pandemia (24,4%), condicionado muitas vezes a trabalhar ou realizar tarefas sob pressão.
A pesquisa identificou também um problema já reportado anteriormente: a de que 8 em cada 10 dos entrevistados teve sua saúde mental negativamente afetada pela pandemia, sendo que apenas 19% receberam algum tipo de apoio psicológico.
"Nós estamos expondo profissionais a problemas de saúde física e mental sem dar apoio algum, exigindo um trabalho sem parar, há doze meses, e sem perspectiva de melhora", diz.
No pior momento da pandemia, isso agravou a sensação de medo (58,8%), cansaço (57,7%), solidão (26,8%) e desesperança (26,6%). Com todo esse sentimento de esgotamento e ansiedade, ainda há uma parcela significativa (mais de 70% dos profissionais) que diz não ter recebido nenhum tipo de treinamento sobre a melhor forma de agir no atendimento à Covid-19.
A percepção é, portanto, de falta de apoio do governo nas três esferas, embora tenha havido uma piora significativa na esfera federal (de 34,2% na terceira rodada para 75,2% na nova etapa). "Foi a primeira vez também que recebemos críticas da postura do Bolsonaro frente à Covid-19", afirma.
Por fim, se há desigualdade na pandemia e ela já foi documentada em diversas formas, como maior número de mortes entre negros, ela também atua nos profissionais de saúde, que são em sua maioria mulheres e negras, nas categorias de agentes comunitárias e profissionais de enfermagem (80%), e homens e mulheres brancos entre os médicos (78,8%).
"Aqui se soma raça, gênero e profissão, que é naturalmente vinculada também à raça e gênero, com as mulheres negras mais presentes em profissões com salários mais baixos, menos valorizadas socialmente, e a combinação desses fatores faz com que estas mulheres negras sejam submetidas a condições piores na pandemia em relação às mulheres brancas, que por sua vez estão submetidas a condições piores que os homens brancos", afirma Lotta.