Mais de um ano e meio após o início da pandemia da Covid-19, a comunidade científica ainda se debruça sobre a origem do coronavírus Sars-CoV-2.
Nas últimas semanas, o debate sobre como o vírus passou a infectar humanos voltou à tona com a possibilidade, não comprovada até agora e sem novas evidências, de um escape laboratorial.
Cientistas renomados de diferentes instituições de pesquisa publicaram uma carta na prestigiosa revista científica Science pedindo que mais investigações fossem feitas acerca da origem do vírus. E o presidente dos EUA, Joe Biden, pediu à Inteligência dos Estados Unidos um relatório sobre a origem do vírus.
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Tudo isso porque o relatório publicado pela OMS (Organização Mundial da Saúde) após investigação em Wuhan não foi conclusivo. Um grupo da entidade esteve com cientistas chineses e descartou uma possível origem do vírus a partir do mercado de animais, mas não teve acesso a outros dados, como informações sobre pesquisas em andamento no Instituto de Virologia de Wuhan com outros coronavírus que infectam morcegos.
Mesmo assim, a OMS classificou como de provável a muito provável a origem do Sars-CoV-2 a partir de um hospedeiro animal para o ser humano, e como extremamente improvável a hipótese de um acidente de laboratório.
Um problema é que, apesar dos esforços com testes em mais de 80 mil animais selvagens e de criação, a OMS não conseguiu achar o hospedeiro animal que serviu de fonte inicial do vírus. Em outras palavras, ainda não se sabe de qual espécie o Sars-
CoV-2 teria "saltado" para a espécie humana.
Diversos estudos buscaram encontrar o parente mais próximo do Sars-CoV-2. Dentre eles está a maior pesquisa evolutiva feita até agora, que indica um vírus encontrado em morcegos –o RaTG13– como o mais próximo, com 96,3% do genoma compartilhado.
Esse nível de semelhança do material genético, embora elevado, ainda não explica a passagem do vírus do morcego para o novo coronavírus.
"A amostragem feita pela OMS de testagem em 80 mil espécimes animais é invejável, mas mais do que a quantidade de indivíduos temos que saber quantas espécies diferentes foram testadas e qual a dimensão geográfica desses animais. Mesmo com essa amostragem é possível não ter ainda chegado a todos os possíveis elos de uma cadeia", explica o virologista Fernando Spilki, coordenador da Rede Corona-ômica e professor da Universidade Feevale.
"Temos agora conhecimento de pelo menos sete coronavírus que infectam humanos. Então o que conhecemos da diversidade em outras espécies, embora tenha aumentado consideravelmente nos últimos anos, provavelmente não é conclusiva", diz.
Mesmo no caso de outros coronavírus o conhecimento da cadeia de transmissão só foi completamente elucidado anos após os primeiros surtos em humanos.
No caso da epidemia de Sars (síndrome respiratória aguda grave), as civetas foram consideradas inicialmente como hospedeiro intermediário, mas depois viu-se que a transmissão partiu, na verdade, de um morcego e que a infecção das civetas foi causada pelos humanos, e não o contrário.
Recentemente, um estudo publicado por pesquisadores da UFRGS na revista Genetics and Molecular Biology demonstrou que 75% dos agentes causadores de doenças infecciosas em humanos "saltaram" de outros animais para a espécie humana.
Embora considere a teoria de origem animal mais provável, Spilki reforça a importância de se investigar como o vírus surgiu até para restabelecer a confiança nessa área de pesquisa, que é fundamental para prever epidemias.
Mas mesmo com o histórico favorecendo a origem zoonótica do coronavírus, o escape laboratorial não pode ser negligenciado até que evidências que o descartem completamente sejam encontradas.
"Não temos nenhuma confirmação sobre quais os tipos de pesquisas estavam em andamento no Instituto de Virologia de Wuhan. De qualquer forma, a possibilidade de um escape em laboratórios de biossegurança elevada é extremamente improvável, não é uma situação normal, mas não é impossível de ocorrer", diz Spilki.
Instituições de pesquisa que lidam com vírus, como é o caso do instituto de Wuhan, tendem a ter protocolos de segurança em vários níveis para conter qualquer possível escape de um agente infeccioso.
"Se considerarmos o nível de segurança requerida atualmente para fazer experimentação com o coronavírus, precisamos de um investimento considerável em infraestrutura e treinamento de pessoas", diz o virologista Jônatas Abrahão, professor do
Instituto de Ciências Biológicas da Universidade Federal de Minas Gerais (ICB-UFMG).
Os profissionais que trabalham em salas do tipo precisam usar roupas especiais e máscaras com alto poder de filtração para evitar qualquer tipo de contaminação, o manuseio de substâncias perigosas e agentes de risco biológico é feito dentro de cabines de segurança, e todo ar que sai do laboratório passa por filtração.
E o que pode dar errado?
"Os pontos mais críticos desses sistemas são bem monitorados. Se as coisas não estiverem perfeitas, o trabalhador nem pode entrar. Mas sempre existe o risco de acidentes", afirma Erna Geessien Kroon, também virologista no ICB-UFMG e membro da Academia Brasileira de Ciências (ABC).
Para a virologista, o ponto mais sensível desse tipo de trabalho é a retirada das roupas especiais. "Foi o que aconteceu com profissionais da saúde na pandemia, que se infectaram tirando a proteção de forma incorreta", diz.
Qualquer acidente dentro do laboratório precisa ter um registro, mas uma infecção na hora da chamada desparamentação é difícil de ser notada. Assim, a pessoa pode sair de dentro do laboratório infectada, mas sem saber o que aconteceu. "Não é impossível, mas a probabilidade é baixa", afirma Kroon.
Na opinião dos virologistas, uma confirmação sobre a origem do vírus é muito difícil de ser alcançada. "O que vai acontecer é que algumas hipóteses vão ganhar mais força sobre outras", diz Kroon.
"O momento da primeira infecção detectada não é o ponto zero do vírus, isso fica bem mais para trás. Se as primeiras infecções aconteceram em Wuhan em dezembro, supondo que o vírus passou de animais para humanos, há um tempo de adaptação até a detecção em pessoas", afirma a virologista.
"Podemos até chegar a uma resposta definitiva, mas ela deve demorar alguns anos", diz Abrahão. "Estudos sobre origens de vírus podem levar cerca de uma década."
De acordo com o pesquisador, os estudos devem procurar evidências por todos os lados, seguindo as evidências.
"Buscar a origem do vírus é muito importante, mas pode ter uso político. Para a ciência, é importante não para punir e responsabilizar culpados, se for o caso, mas para ter o conhecimento capaz de prevenir futuras pandemias", diz o virologista.