O maior consumo de remédios durante a pandemia do coronavírus Sars-CoV-2, especialmente dos medicamentos que fazem parte do chamado "kit Covid", promovido pelo governo federal para cura e prevenção da Covid-19 mesmo sem provas científicas de eficácia, fez cientistas brasileiros emitirem um alerta à comunidade acadêmica para os riscos ambientais que podem acarretar do lançamento desses compostos na natureza.
Ainda se sabe pouco sobre o efeito dos fármacos despejados em rios e no solo, mas alguns deles, como a ivermectina, já foram encontrados em animais aquáticos e classificados como tóxicos para esses organismos. A cloroquina também foi considerada por cientistas como prejudicial para a vida aquática. Embora a hidroxicloroquina seja menos tóxica, os dados sobre os efeitos dessa substância na natureza ainda são escassos, e a incógnita cresce com o aumento no consumo do medicamento.
A presença de antibióticos, antiinflamatórios e analgésicos no ambiente já é bem documentada. Entre os malefícios que podem ser causados pelos excesso de remédios aos anfíbios, invertebrados e peixes estão problemas reprodutivos e de desenvolvimento, além de mudanças comportamentais e hormonais.
"As estações de tratamento de esgoto e água ainda não têm tecnologia para retirada de todos esses poluentes -possivelmente, esse será sempre um desafio. Subprodutos novos, vindos dessas substâncias, entram no ambiente em quantidade colossal o tempo todo, e a tecnologia não consegue acompanhar esse movimento", afirma o biólogo Davi Felipe Farias, professor e pesquisador na Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
No fim do ano passado, Farias assinou com outros nove pesquisadores brasileiros uma carta na revista científica Environmental Toxicology and Chemistry com um alerta sobre os riscos do crescimento do despejo dessas substâncias na natureza devido ao aumento da automedicação durante a pandemia.
"Provavelmente, o incentivo ao uso de drogas contra a Covid-19 também está fazendo chegar mais poluentes aos ambientes aquáticos", diz Farias.
De acordo com o Conselho Federal de Farmácia (CFF), somente entre os meses de janeiro e março de 2020 houve um aumento de quase 70% nas vendas da hidroxicloroquina em relação ao mesmo período de 2019 -o remédio faz parte do chamado 'tratamento precoce', propagandeado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e pelo Ministério da Saúde. O paracetamol e a dipirona tiveram acréscimo nas vendas no mesmo período de 77% e 55%, respectivamente.
Desde julho de 2020, é preciso ter receita médica para a compra da hidroxicloroquina e da cloroquina, mas há pressão popular para que médicos receitem e farmácias vendam os medicamentos, segundo médicos e farmacêuticos.
Quando tomamos um medicamento, parte dele é metabolizada pelo nosso corpo, mas uma outra parte é excretada nas fezes e urina, explica Gabrielle Rabelo Quadra, bióloga e pesquisadora na UFJF (Universidade Federal de Juiz de Fora) que estuda os efeitos dos fármacos lançados na natureza.
O caso do Brasil é especialmente delicado, segundo Farias. Além da promoção em larga escala do uso do chamado "tratamento precoce" e da prática da automedicação, o país sofre com tratamento de esgoto e água ainda insuficientes.
De acordo com dados do Instituto Trata Brasil, organização que defende avanços do saneamento básico no país, quase metade dos brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto, e somente metade dos esgotos têm o material tratado antes de ser lançado aos rios.
"Embora os fármacos tenham tendência a se degradar mais rapidamente do que agrotóxicos, por exemplo, ainda não conhecemos muito bem os efeitos desses compostos na natureza. Pode ser que alguns deles fiquem por mais tempo no ambiente", diz Quadra.
A bióloga lembra ainda que remédios são usados todos os dias por milhões de pessoas no país, e, assim, seus compostos são lançados para a natureza continuamente. "Com o aumento do consumo de remédios neste último ano, as concentrações dessas substâncias devem estar altíssimas", afirma.
"Esses poluentes são encontrados em pequenas quantidades, mas são continuamente liberados. É um efeito muito mais crônico do que agudo, e essas substâncias podem se acumular no ecossistema ao longo do tempo", diz Farias, da UFPB.
Segundo Quadra, estudos vêm comprovando a presença desses remédios na água potável em concentrações muito baixas, da ordem de nanogramas por litros –consideradas inofensivas. "Mas como não sabemos muito ainda sobre esses compostos, e bebemos muita água todos os dias, não podemos prever os efeitos disso no longo prazo", diz a bióloga.
As concentrações de antibióticos e hormônios nos rios estão crescendo, de acordo com Quadra, e as consequências desse aumento preocupam os cientistas. O uso em grande escala de antibióticos está ligado ao surgimento de bactérias resistentes a esses remédios, mas ainda não é possível dizer se os antibióticos lançados na natureza podem agravar esse problema.
Segundo os pesquisadores, além das substâncias despejadas pelo esgoto, o descarte inadequado de remédios pelo lixo comum, ralo ou vaso sanitário sobrecarrega ainda mais um sistema de saneamento que já é muito frágil. Medicamentos vencidos ou que não serão mais usados devem ser levados até farmácias que tenham ponto de coleta desses produtos para que recebam um fim adequado.
"É preciso ampliar as redes de esgoto e as estações de tratamento, incorporando técnicas mais eficientes", diz Quadra. "Como cidadãos, precisamos também pensar em como descartar corretamente os medicamentos", completa.
Para Farias, é necessário que a legislação obrigue alguma vigilância sobre as quantidades desses poluentes. "Precisamos de financiamento para pesquisas que investiguem as quantidades dessas substâncias na natureza, onde elas estão e quais os efeitos que podem ter", diz o biólogo.