Saúde

Jovens têm dificuldade de conviver ao vivo após pandemia sob telas

14 jan 2022 às 18:07

Tentar conversar com um amigo e o assunto não surgir foi uma das experiências que alunos do Colégio Porto Seguro relataram ao voltarem para as aulas presenciais depois de um ano e meio de estudos por meio de videoconferência. "Eles tinham criado uma nova forma de se relacionar pelas ferramentas digitais", analisa Meire Campelo Nocito, diretora institucional da escola.


Se, antes do isolamento, os aparelhos eletrônicos eram vistos com preocupação por muitos pelo excessivo uso dos jovens, em meio à quarentena imposta pela Covid-19 o uso de telas para aulas online e contato com os amigos foi a solução encontrada para manter a rotina dos alunos.


Agora, com o avanço da vacinação no Brasil e a retomada da vida presencial, pais e educadores relatam que, depois de tanto tempo sem contato físico, crianças e adolescentes estavam ansiosos pelo retorno, mas apresentaram dificuldade em socializar frente a frente –alguns tiveram dificuldade em aceitar que é hora de começar a ensaiar uma volta.


No Porto Seguro, ao notar que os alunos passavam mais tempo ainda nos celulares durante o intervalo e que a convivência tinha sido afetada com a pandemia, a escola reforçou o projeto Desconecta, que promove atividades para os alunos passarem o intervalo longe dos aparelhos eletrônicos. A retomada também foi acompanhada de mentorias.


"Não dá para a gente voltar depois de um ano e meio de pandemia e pensar que as crianças retornaram da mesma forma que saíram", diz Meire, avaliando que o colégio precisou resgatar práticas que foram perdidas durante as aulas online, em que a maioria deixava as câmeras desligadas e pouco participavam.


A educadora reflete que as aulas presenciais também envolvem situações de conflitos com as quais o jovem precisa saber lidar. "Em casa, se eles passassem por um conflito, era só desligar a câmera ou não responder no chat. Agora, se têm um problema no intervalo presencial, precisam lidar com isso ou, ainda, escutar a opinião dos outros em um trabalho em grupo."


No Colégio Santa Maria, a professora de inovação e criatividade Elizabeth Fantauzzi, que leciona para o ensino médio, analisa que, ao longo do período em casa, os alunos criaram hábitos que foram difíceis de serem driblados. Agora, eles estão começando a entender que não estão mais em casa.


"Eles se acostumaram a levantar para ir ao banheiro na hora que quisessem ou comer quando sentissem vontade. Eles trouxeram para dentro da sala. A gente tem que policiar e até brincamos quando notamos que eles estão distraídos nas salas dizendo: 'gente, liga a câmera, vocês não estão em casa", diz ela.


Já para os alunos mais novos, o desafio da escola foi tentar acolher aqueles que estavam mais fragilizados e sem saber como lidar com os colegas. Vanini Mesquita, orientadora do 5º ano do ensino fundamental, relata que também foi preciso resgatar trabalhos em conjunto e a importância do ensino coletivo.


"As relações ficaram bem abaladas, enquanto a escola estava preocupada com a questão pedagógica, o prejuízo foi maior no âmbito emocional. Hoje, eles conseguem respeitar o colega que está falando, algo que, no início, tinham dificuldade", diz Mesquita, que relata que muitos alunos voltaram chorosos.


Em algumas ocasiões, ela conta, houve crianças que não conseguiram fazer avaliações individuais. "A gente sabe que estavam em casa com a família, que ajudou neste momento. Quando se veem na escola, em um ambiente que, por mais que o professor ajude, a maior parte fica por conta deles, eles ficam amedrontados", diz.


As telas não foram abandonadas dentro da sala de aula e são usadas como ferramenta educacional, mas a educadora analisa que a maioria tem aproveitado e curtido escrever no caderno, fazer atividade e expor atividades no papel. "Eles sentiram essa falta, acho que teve um exagero de tempo de uso de tela e agora eles estão revivendo isso."


A compreensão de que o uso de telas foi excessivo e pode gerar consequências para crianças e adolescentes também pairou sobre pais. É o caso de Helen Michelet, 46, mãe de três crianças, de 6, 9 e 11 anos. Para tirá-los de dentro de casa e, consequentemente, de frente da televisão, iPad e videogame, ela matriculou os pequenos "em todas as aulas extracurriculares que você possa imaginar".


"Eles vieram de um ano e meio de letargia para uma agenda de CEO", brinca Michelet. A nova carga horária foi tamanha que ela já reuniu as crianças para dizer que, em 2022, terão que escolher algumas poucas atividades. "Eles também precisam de tempo para brincar", diz ela.


Autora do livro "Mãe Fora da Caixa", Thaís Vilarinho tem dois filhos, 14 e 11 anos, que, segundo ela, sentiram dificuldade com o retorno. "As crianças acabaram desenvolvendo preguiça por estar muito tempo em casa.


Além disso, pensavam muito que se podiam fazer alguma atividade online não tinha a necessidade de sair de casa."


Ela relata que, apesar de os filhos gostarem do social, no período que ficaram em casa faziam muito menos, o que se tornou cômodo.


"Parece que a gente tem que puxar ele", diz ela, lembrando que, quando as medidas de restrição para evitar a propagação da Covid-19 começaram a ser flexibilizadas, os filhos resistiam a sair de casa. "Não queriam ir de jeito nenhum por preguiça e vício [nas telas]", diz Vilarinho. Ela afirma que no fim do semestre eles saíam com maior frequência.


Especialistas apontam que é necessário um controle sobre a quantidade e a qualidade de tempo que crianças e adolescentes passam em frente às telas. Kelli Angelini, gerente do departamento jurídico do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR, analisa que, mesmo com o retorno das aulas presenciais, os jovens pegaram ainda mais gosto pelas atividades online e querem cada vez mais.


Em meio à retomada, Angelini afirma que uma das consequências que têm notado é a dificuldade de enfrentar problemas. "Eles vão para o online resolver esses problemas, ou seja, não têm condições de enfrentar situações e usam o online para exteriorizar isso, por meio de xingamentos e ofensas", explica a gerente, que trabalha com o tema para mostrar aos jovens que esse comportamento pode gerar consequências.


Professora do Departamento de Neurociências da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP, Maria Beatriz Linhares pondera que as famílias vieram de uma situação atípica de pandemia, em que a adaptação foi necessária. Mas, agora, com a retomada, os jovens precisam ser estimulados com a vida externa.


Ela analisa que o excesso no uso de telas pode acarretar no risco de problemas no desenvolvimento de crianças e relembra que a Sociedade Brasileira de Pediatria não recomenda o uso de telas até dois anos, e, para crianças de dois a cinco anos, o uso deve ser de uma hora por dia, no máximo.


Linhares analisa que o cuidado com o conteúdo online é necessário entre os jovens e deve se evitar, principalmente, conteúdos violentos. Agora, diz ela, resta às escolas o resgate da socialização. "É preciso estabelecer relações sociais e neutralizar impactos negativos dos tempos de pandemia."

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