Sem conseguir controlar o sarampo, o Brasil já registra novo avanço da doença neste ano, ao mesmo tempo em que a pandemia do novo coronavírus ameaça os índices de vacinação, única forma eficaz de prevenção.
Ao todo, já são 2.805 casos confirmados de sarampo, um aumento de 18% em apenas uma semana, segundo dados do Ministério da Saúde.
O número também é superior aos primeiros quatro meses de 2019, quando havia apenas 92 confirmações. Em seguida, porém, a transmissão acelerou e chegou a 18 mil casos.
Neste ano, o total ainda pode aumentar, já que há 3.219 registros em investigação.
Atualmente, o país tem transmissão ativa do sarampo em 19 estados. Cinco deles concentram 96% dos registros atuais: Pará, Rio de Janeiro, São Paulo, Paraná e Santa Catarina.
No Rio de Janeiro, já são 826 casos, quase o dobro de 2019, quando houve 496, diz a Secretaria Estadual de Saúde. A pasta atribui o avanço a uma migração do surto que ocorria até então com maior força em São Paulo.
Enquanto o sarampo mantém a tendência de avanço, especialistas alertam para o risco de queda na busca pela vacinação de rotina por causa da pandemia do novo coronavírus.
A presença de locais com baixa cobertura vacinal é apontada como o principal fator para o retorno do sarampo no país, o que ocorreu em 2018. "Enquanto na Covid uma pessoa infecta de duas a cinco pessoas, no sarampo vai de 16 a 18. É difícil controlar se não tiver a vacina, e só uma dose não traz anticorpo suficiente, precisa de duas", afirma Lessandra Michelin, da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia).
"Temos visto muita criança com vacina atrasada", diz a pediatra Isabella Ballalai, vice-presidente da Sbim (Sociedade Brasileira de Imunizações).
"Ainda não temos os números, mas já temos essa percepção de que estão buscando menos a vacinação. As pessoas buscam a vacina da gripe. As outras, não."
Segundo Ballalai, mesmo com recomendação de isolamento, a vacinação de rotina deve ser mantida.
Nas últimas semanas, já houve casos de suspensão temporária de serviços em áreas com risco de colapso do sistema pela Covid-19, caso de cidades no Amazonas.
Já em outros locais, não há motivo para atraso no calendário. "Se não sair de casa para vacinar, com todo o rigor e cuidado, a coisa vai piorar muito", diz Ballalai.
"Se o serviço tiver falta de salas e pessoal, aí adia. Mas ainda não temos essa situação na maior parte do país. A vacinação é um dos serviços essenciais."
Médicos que atuam em postos com salas de vacinação confirmam queda na procura.
"Mesmo informando que a vacinação ocorre normalmente, vemos redução", conta Rodrigo Lima, diretor da Sociedade de Medicina de Família e Comunidade, que trabalha em uma unidade de saúde em Samambaia, no Distrito Federal.
A situação se repete em outros estados do país. "Sem dúvida o distanciamento já está repercutindo na vacinação de rotina, com menor adesão. Mas isso não nos impede de continuar atuando", afirma Núbia Araújo, diretora de Imunizações da Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo.
Segundo ela, municípios têm organizado estratégias para manter a vacinação, como oferta de vacina com agendamento ou em espaços abertos dentro de escolas.
"Não podemos atrasar a vacinação das crianças, porque isso poderia aumentar o risco de surtos, sobrecarregando os hospitais com doenças evitáveis."
A queda na vacinação durante a pandemia já preocupa a OMS (Organização Mundial de Saúde).
Em comunicado emitido com a Unicef, a entidade prevê que 117 milhões de crianças podem ficar sem vacina do sarampo por causa da Covid-19 no mundo.
A estimativa considera que 24 países tiveram vacinações canceladas em meio a pandemia e 13 planejavam a suspensão de campanhas até então.
Neste ano, a vacinação de rotina foi suspensa em alguns estados no momento de campanha para imunização de idosos contra a gripe. O motivo era evitar o risco de transmissão do coronavírus a esse grupo, mais vulnerável a complicações.
Encerrada essa fase, a vacinação foi retomada em abril. Ainda não há dados de como a medida pode ter impactado na cobertura vacinal e da situação atual.
A dificuldade em manter a vacinação em dia, no entanto, não é um desafio restrito à pandemia, apesar de se agravar durante esse período.
No início de março, uma campanha para vacinar crianças e jovens entre 5 a 19 anos contra o sarampo se encerrou com 156 mil pessoas vacinadas, entre 3 milhões previstas. O Ministério da Saúde afirma não ter dados atualizados.
Já no Rio de Janeiro, uma campanha própria desde janeiro deste ano para vacinar pessoas com até 59 anos tem até agora 1,4 milhão de vacinados –a meta é chegar a 3 milhões.
Renato Kfouri, da Sociedade Brasileira de Pediatria, diz que o isolamento social pode ser positivo inclusive para evitar a disseminação do sarampo e outras doenças.
A medida, porém, seria temporária. "Não quer dizer que não devemos vacinar mais ninguém. Ninguém fica em distanciamento a vida inteira."
Para os especialistas, o ideal é que municípios adotem formas alternativas de manter a vacinação de crianças e adultos em meio ao avanço do coronavírus.
Entre as recomendações, estão o uso de espaços abertos e estrutura de escolas, agendamento para evitar lotação de salas de vacinação e reforço de orientações como uso de máscaras –exceto por menores de 2 anos.
"Mesmo no lockdown, os serviços podem agendar ou aplicar em casa, diz Michelin, da SBI.
Já as tradicionais campanhas não são recomendadas. A exceção é a contra gripe, voltada a grupos mais vulneráveis também a Covid, e feita em alguns lugares com drive-thru.
Para Ballalai, caso seja mantido o atraso na vacinação, o risco de impulso ao sarampo é alto. "A sazonalidade do sarampo é maior na primavera. Enquanto ficar trancado em casa, até pode não ter de onde pegar. Mas, quando voltar para a escola sem vacina, o que vai acontecer?"
Questionado sobre ações, o Ministério da Saúde não respondeu.
Em boletim, a pasta orienta apenas que "as ações de vacinação devem considerar o cenário epidemiológico da Covid-19, especialmente nas localidades onde há casos confirmados e que também apresentam circulação ativa do vírus do sarampo".
"Assim, são necessárias medidas de proteção para os profissionais de vacinação e a população", aponta, sem detalhes. A pasta diz ainda que o plano do país para eliminar o sarampo está em revisão.