Você já deve ter ouvido falar que passar raiva faz mal à saúde. Um estudo publicado esta semana no Journal of the American Heart Association sugere que isso não é lenda. De acordo com a pesquisa, episódios breves de irritação podem causar disfunções imediatas nos vasos sanguíneos, aumentando a vulnerabilidade a infartos e derrames.
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Os pesquisadores avaliaram 280 adultos divididos em quatro grupos: um deles foi orientado a relembrar uma memória pessoal que causou irritação, o outro a rememorar uma situação que tenha gerado ansiedade. O terceiro conjunto teve de dizer frases evocando tristeza, enquanto o quarto contou repetidamente até 100, para induzir um estado emocionalmente neutro.
A análise dos vasos sanguíneos foi feita antes das tarefas e, em seguida, após três, 40, 70 e cem minutos a partir do início do experimento, por meio de um aparelho que analisa a estrutura dos vasos da ponta dos dedos (de aparência similar à de um oxímetro), explica a cardiologista Aurora Issa, diretora do Instituto Nacional de Cardiologia do Ministério da Saúde.
O estudo mostrou que, depois de 40 minutos, pessoas submetidas a lembranças de raiva tiveram prejuízos na dilatação dos vasos sanguíneos, mecanismo fundamental para o bom desempenho do sistema cardiovascular. Embora essa disfunção se mantivesse por pouco tempo, a hipótese é de que esse efeito possa gerar complicações de longo prazo, caso ocorra com frequência, diz Issa.
A principal estrutura comprometida pelo sentimento de raiva foi o endotélio, que reveste a superfície interna dos vasos. Esse tecido produz e libera substâncias importantes para a contração e o relaxamento vascular, gerindo o fluxo sanguíneo, explica o cardiologista Carlos Henrique Rassi, coordenador do Centro de Cardiologia do Hospital Sírio-Libanês em Brasília. O desequilíbrio dessas funções favorece o acúmulo de gordura nas artérias, trombose, hipertensão, inflamação, isquemia e outras complicações.
A disfunção no endotélio foi identificada apenas no grupo induzido à raiva, surpreendendo a comunidade médica, que também esperava encontrar danos aos pacientes submetidos à tristeza. Ainda não se sabe o porquê da diferença, mas uma hipótese é a de que o rendimento cardíaco diminui quando se está triste, gerando menor contração vascular do que a irritação e menos prejuízo ao tecido, diz o cardiologista Fernando Costa, da Beneficência Portuguesa de São Paulo.
Relações entre estado mental e saúde cardiovascular são estudadas há décadas e, embora a nova pesquisa traga insights sobre o mecanismo dessa interação, análises com populações maiores ainda precisam ser feitas para que algo se altere no protocolo clínico, diz o cardiologista Luciano Ceolin Rosa, diretor técnico do Instituto de Cardiologia do Rio Grande do Sul.
O fator cultural está entre os vieses da pesquisa, diz o cardiologista Antônio Aurélio Fagundes Júnior, pesquisador do Idor (Instituto D'Or de Pesquisa e Ensino). "Existem povos mais ou menos emotivos e a percepção de raiva ou tristeza pode variar conforme a cultura", exemplifica.
A expectativa é que a ciência continue sedimentando um campo que vem sendo fomentado desde os anos 1990 com estudos epidemiológicos. Um dos mais recentes, publicado em 2020 no periódico Psychological Medicine, investigou os impactos do rastreamento, diagnóstico e tratamento da depressão na incidência de eventos cardíacos.
A pesquisa constatou que o acompanhamento da saúde mental de pacientes com síndromes coronarianas agudas e o tratamento adequado da depressão podem melhorar os resultados cardíacos a longo prazo.
Em 2022, o The American Journal of Medicine publicou uma revisão sobre o tema, apontando que existe um risco aumentado de problemas cardiovasculares entre pacientes estressados, ainda que esse não seja um fator de risco tão forte quanto diabetes ou tabagismo.
Em abril, durante o encontro anual do Colégio Americano de Cardiologia, a cardiologista brasileira Maria Emília Teixeira, da UFG (Universidade Federal de Goiás) apresentou resultados de um estudo com cem pessoas indicando que o contato com mensagens de WhatsApp evocando perdão e sentimentos de alegria ajudavam a reduzir a pressão de pacientes hipertensos.
Também seguindo essa linha, a SBC (Sociedade Brasileira de Cardiologia) lançou um núcleo para debater as relações entre saúde cardiovascular e saúde mental. "Cada vez mais vemos a importância de abraçar os pacientes em sua integralidade. Na cardiologia, esse olhar só tende a ganhar força", diz o cardiologista Nivaldo Filgueiras, membro do Conselho Administrativo da SBC.