Ao ouvir um jornalista perguntar em francês, idioma falado na República Democrática do Congo, a refugiada Yolande Bukasa até tentou nas primeiras palavras, mas respondeu em português. No Brasil, desde 2013, a atleta realizou nesta quarta-feira (10) o sonho de participar dos Jogos Olímpicos ouvindo os brasileiros e estrangeiros gritarem seu nome e, apesar da derrota na primeira luta de judô, saiu feliz e de cabeça erguida.
"Ouvi muita gente me chamando, senti como se estivesse na minha casa. Fiquei muito feliz, senti que muita gente gostou de mim", disse a judoca, que prometeu: "Vou continuar a lutar, claro. Estou forte e estou nova. Vou lutar mais e não vou parar, não. A luta não é só o judô, é a luta da vida. Estou lutando pela minha vida".
Quando foi anunciada para entrar no tatame, Yolande foi muito aplaudida pelo público nas arquibancadas, que gritaram seu nome e a motivaram durante a luta, contra a israelense Linda Bolder, na categoria até 70 quilos. A judoca é protagonista de uma trajetória que começa no bombardeio de sua vila e na perda de toda a família, aos 10 anos, passa pelo abandono dos dirigentes de seu país quando chegou ao Brasil e inclui muitas dificuldades financeiras quando morava de favor em uma favela da zona norte da cidade e fazia bicos descarregando caminhões para sobreviver.
Agora, ela acrescenta à memória um capítulo de alegria. "Um dia, quando eu fizer minha familia, 'vou falar: filho, filha, que dia feliz na minha vida'. Está tudo guardado na minha recordação, na minha cabeça", sorri a atleta.
Assim como o passado de guerra e dificuldades, o calor da torcida e o sorriso do sonho realizado fazem parte da história do também congolês Popole Misenga, que fez o público vibrar com a vitória sobre o indiano Avtar Singh, na categoria até 90 quilos. Popole nasceu na mesma vila que Yolande e a acompanhou em boa parte dos obstáculos até que os dois chegassem ao tatame olímpico.
"Quando entrei, pensava que não ia ter nenhum torcedor, e, então, vi que o Brasil inteiro está torcendo pra mim. Fiquei emocionado. Senti que tinha que vencer essa primeira luta. E consegui vencer", comemora ele, que afirma se sentir brasileiro por ser casado com uma brasileira e ter uma filha que nasceu no país. Só que ele nem conseguiu saber se elas estavam na arquibancada. "Muitas pessoas estavam torcendo pra mim, não consegui olhar direito".
O segundo confronto de Popole foi com o campeão mundial Donghan Gwak, da Coreia do Sul, e surpreendeu pelo equilíbrio. O congolês conseguiu segurar o coreano até os quatro minutos e um segundo, e apenas no último minuto da luta sofreu o golpe que levou à derrota.
"Ele lutou até o último minuto e não conseguiu fazer nenhum golpe dele. Nas competições, vou atrás dele, vou pegar ele", disse orgulhoso o judoca, que espera conseguir apoio e patrocínio para realizar as ambições que não faz questão alguma de esconder. "Vou em outro evento, em outra Olimpíada, e vou atrás desse campeão do mundo para ganhar dele. Estou acreditando que vou ganhar".
Para os refugiados que o assistiram ou que ficarão sabendo de sua vitória, Popole deixa uma mensagem de confiança: "Não tire seus sonhos de você. Nós todos somos iguais, nós todos somos seres humanos. Dá pra fazer. Acredite".
Sensei
O orgulho de Popole e Yolande no dia de hoje só podia ser comparado ao de um mestre do judô brasileiro que já havia comemorado uma vitória nesta semana: o sensei Geraldo Bernardes, de 73 anos, que treinou os congoleses e também acompanhou a campeã Rafaela Silva desde os 8 anos de idade. Rafaela conquistou o primeiro ouro do Brasil na Rio 2016.
Geraldo faz questão de deixar registrado que Popole conseguiu fazer frente ao campeão mundial na maior parte de sua luta e afirma que o lutador pode mesmo enfrentar mais um ciclo olímpico. Ele conta sua "imensa satisfação" em ver os frutos do trabalho social no Instituto Reação, onde treina crianças e jovens de famílias pobres da Cidade de Deus, da zona oeste do Rio. "Ele saiu com a medalha dele no peito, pra mim. E saí com a medalha social de ouro aqui no meu peito", disse ele.
Yolande e Popole chegaram ao Instituto Reação para treinar sem o compromisso de participar de competições internacionais, em 2015, e Geraldo conta que o cenário mudou quando o COI elegeu os atletas para entrar para o time de refugiados. A preparação que outros atletas fizeram em quatro anos de ciclo olímpico, os congoleses receberam em quatro meses e foi preciso ir das regras ao condicionamento físico para deixá-los prontos para enfrentar os melhores do mundo.
"Tive que ensinar de novo toda a regra da competição. Foi muito trabalho em pouco tempo que fizemos com eles", diz o técnico, que compara o seu trabalho a lapidar diamantes brutos e lembra que teve que muitas vezes ser também o preparador físico e o psicólogo dos dois. "Fiz um planejamento para que pudessem participar da concentração com a seleção brasilerira, e isso deu um upgrade muito grande, porque eles tinham muito pouco tempo".
Enquanto preparava os dois para a competição, ele também se preocupou com o futuro deles após o esporte e conta que o Instituto Reação conseguiu que a Universidade Estácio de Sá fizesse aulas de nivelamento para que eles possam tentar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e buscar uma profissão no Brasil. "Esporte, por melhor que seja, é passageiro. Estamos trabalhando sempre isso, o binômio educação e esporte".
Toda a dedicação criou laços afetivos entre os judocas e o mestre, que Yolande considera um pai. "O Instituto Reação é uma família, me senti como em casa. Meu professor Geraldo é meu pai. Ele me ajuda muito", reconhece, que também lembra do judoca Flávio Canto, presidente do instituto, e dos outros atletas que treinam com ela. "Todos me ajudaram muito. Vou falar pra eles muito obrigado. A luta acabou hoje, mas vamos treinar mais forte, mas muito, porque tem muitas lutas na frente. Estamos juntos".
Popole também reconhece o sensei por trás de sua garra para ir a outras competições: "O treinador mais forte do Brasil".