"Quem imaginaria ter uma infectologista no meio do preparo para a Olimpíada?", questiona a médica Ho Yeh Li, 48.
Coordenadora da UTI de moléstias infecciosas do Hospital das Clínicas de São Paulo, Ho participou do resgate dos brasileiros sitiados em Wuhan, na China, em fevereiro de 2020, e virou até personagem de quadrinhos homenageada pela Turma da Mônica.
Daquela época em que a pandemia de Covid-19 ainda nem havia sido decretada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) até o cenário atual, milhões de mortes depois, mas também com o desenvolvimento e a aplicação de vacinas, muito se aprendeu sobre a doença.
É na imprevisibilidade do novo coronavírus e de suas variantes, porém, que ainda se encontra a maior ameaça para os Jogos Olímpicos do Japão. Adiado em 2020, o megaevento tem início marcado para 23 de julho.
Diante da missão mais complexa de sua história, o COB (Comitê Olímpico do Brasil) formou um comitê médico com o objetivo de debater e tomar decisões relacionadas à doença em meio aos preparativos da ida a Tóquio.
Ho, nascida em Taiwan, foi convidada para esse grupo, do qual também fazem parte Ana Carolina Côrte, coordenadora médica do COB, Beatriz Perondi, especialista em medicina do esporte e coordenadora responsável pela área de situações extremas do Hospital das Clínicas, e Felipe Hardt, também especializado em medicina esportiva.
Eles se reúnem semanalmente com a equipe de operações do comitê para definir todos os procedimentos relacionados à delegação brasileira no Japão. Os temas abrangem testes, distribuição de uniformes, distanciamento na hora das refeições e da prática esportiva, bem como as condutas que serão adotadas nos voos e dormitórios.
Além disso, as conversas com outros médicos, fisioterapeutas, preparadores físicos e psicólogos, inclusive aqueles que trabalham com as confederações esportivas, se intensificaram. Agora, além de lesões, dores e performance, é preciso discutir a Covid e seus impactos.
"Quando fui convidada, não sabia exatamente como falar com os médicos do esporte no contexto de uma pandemia. No meu dia a dia normal, não trabalho com atletas, mas com pessoas imunodeprimidas. Eu os ensino [demais médicos] e também aprendo sobre as características das pessoas que praticam atividade física profissional, qual é o normal deles para entender o que seria o não normal deles", afirma Ho.
Côrte, 41, explica que, diferentemente de outras missões do COB, na de Tóquio haverá um médico em todas as bases do Time Brasil. Isso fez com que o número deles dobrasse na delegação, de 8 para 16. O perfil desses profissionais também será diferente. "A gente procurou não deixar um ortopedista na base, mas um médico do esporte que tenha formação clínica. Ortopédica também, mas fundamentalmente ele tem que saber sobre a Covid, não basta saber sobre as lesões."
Houve mudanças ainda nos tipos de medicamentos levados, e o carregamento de 20 contêineres com materiais despachados pelo COB ganhou o reforço de 68 mil máscaras descartáveis, 12,5 mil sapatilhas TNT e 400 borrifadores de álcool. Testes de antígeno doados pela Fiocruz serão levados em adição aos exames oficiais da organização.
Além dos cuidados gerais, há que se pensar esportivamente. Segundo explica a coordenadora médica do COB, algumas estratégias serão importantes, por exemplo não deixar os dois levantadores dos times de vôlei no mesmo quarto, ou os dois principais jogadores das equipes de handebol.
De acordo com as últimas regras divulgadas, os atletas serão testados diariamente. No caso de resultado positivo confirmado, aqueles considerados contatos próximos passarão por novos exames.
Ho conta que se surpreendeu com algumas demandas específicas do universo esportivo, em um evento que reunirá 11 mil atletas e outras dezenas de milhares de pessoas. "Quando a Ana me falou que tinha uma costureira para ajustar os uniformes eu quase caí de costas. Essa pessoa poderia ser um grande vetor que transmitiria para todo mundo se ficasse doente."
Após a consulta à infectologista, não haverá mais costureira na delegação. Os uniformes serão ajustados no Brasil, e "cada um que leve sua linha e sua agulha se precisar", brinca Côrte.
A cerimônia de abertura é outra preocupação das médicas, principalmente pelo fato de reunir tantas pessoas de todos os países num desfile logo no início dos Jogos. O COB e os organizadores não se posicionaram oficialmente sobre o tema até agora.
Nem sempre é fácil para as médicas encontrar uma resposta para as muitas dúvidas que surgiram ou ainda vão aparecer. O que dizer, então, sobre aquelas perguntas mais amplas, como "os Jogos Olímpicos devem acontecer?", ou "é possível ter uma Olimpíada segura?".
"Minha resposta vale para todas as situações. Não cabe a nós decidir se vai ou não ter Jogos, mas cabe a nós organizar e planejar para que a gente tenha os Jogos mais seguros possíveis, pelo menos para a nossa delegação brasileira", afirma Côrte.
"Infecção zero é quase impossível, porém, se tiver uma pessoa infectada, que ela possa transmitir para o menor número de pessoas ou não transmitir para ninguém. Para mim isso são Jogos seguros. Isso significa a maior adesão possível às medidas de prevenção. Toda essa estratégia que começa antes da viagem", diz Ho.
Os playbooks, guias de regras sanitárias da organização, está em sua segunda versão e terá uma terceira lançada em junho. As médicas estão preparadas para mudanças constantes de cenário e orientações, mas comemoram o fato de que, da primeira para a segunda edições, recomendações genéricas deram lugar a protocolos mais específicos.
"Quando saiu o primeiro a gente ficou assustada e preocupada. Hoje as coisas estão bem mais direcionadas e coerentes com aquilo que a gente pensa", avalia Côrte.
Ela, que também trabalha no Corinthians, sabe que não é fácil manter os atletas, em sua maioria pessoas jovens, na linha. Mas desta vez não há espaço para alternativa nem jeitinho, mesmo com a compreensão de que foram meses de sufoco para não perder totalmente a preparação.
"Às vezes eles tiveram que ficar muito tempo trancados treinando numa varanda. Foi e é muito difícil. Temos usado comunicação, educação, para que eles entendam que se vacilarem vão perder tudo o que construíram até agora. E se o colega vacilar, eles podem perder também. Tem que ser uma responsabilidade em equipe."
Se a missão de repatriação na China ocorreu no susto, com o embarque no avião 48 horas depois do convite, Ho agora tem tempo para planejar. Mas isso não significa um desafio menor. Além de buscar que nenhum atleta brasileiro se contamine e tenha a sua saúde em risco no Japão –sem contar a perda dos Jogos–, é preciso se preocupar também com o retorno.
"Lá você vai ter o encontro de pessoas de muitos países. Se houver essa questão de grandes variantes, como uma sopinha de letrinhas que vai se mutando, imagina o cuidado que tem que ter na hora de voltar ao Brasil. O voo de volta precisa ter o mesmo cuidado para não trazer outras variantes para cá", alerta.
A reta final da preparação para a viagem tem sido marcada pela vacinação dos atletas brasileiros, com as doações do Comitê Olímpico Internacional, e também de cursos práticos.
No último fim de semana, a área médica do COB promoveu um treinamento de emergências para 40 profissionais em parceria com a Prevent Sports, patrocinadora do comitê. Os protocolos de coronavírus também foram abordados.
Uma das responsáveis pelo treinamento, Ho quer deixar claro qual a missão dos médicos na preparação olímpica. "O objetivo jamais será barrar um atleta por causa de teste positivo. O que estamos fazendo é conscientizar e tornar o jogo o mais seguro possível. Isso vai ser fundamental para definir quem será o campeão."