A divulgação das novas diretrizes do COI (Comitê Olímpico Internacional) para inclusão e participação de atletas transgêneros e com diferenças no desenvolvimento sexual indica a possibilidade de mudanças relevantes, mas seus efeitos imediatos ainda são desconhecidos.
O principal impacto inicial do documento publicado nesta terça-feira (16) pela entidade está na mudança de tom e abordagem do tema, que nos últimos anos se mostrou um dos maiores desafios para as organizações que regulam e organizam o esporte mundial.
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O chamado Guia do COI sobre Justiça, Inclusão e Não Discriminação com Base na Identidade de Gênero e Variações de Sexo possui 10 princípios básicos, entre eles inclusão, prevenção de danos, não presunção de vantagem e primazia da saúde e autonomia.
Ele atualiza e substitui o entendimento mais recente do comitê sobre o assunto e fornece princípios, mas não determina regras a serem seguidas.
"O COI não está em posição de emitir regulamentos que definam os critérios de elegibilidade para cada esporte, disciplina ou evento nas diferentes jurisdições nacionais e sistemas esportivos", esclareceu.
Estes foram deixados para que as entidades reguladoras de cada esporte definam com base em suas especificidades.
Em 2015, uma publicação bem mais enxuta do COI tentou estabelecer um critério padrão para a participação de atletas transgêneros em todos os esportes: homens trans poderiam competir sem restrições nas categorias masculinas e mulheres trans precisariam se submeter a pré-condições nas categorias femininas.
A principal norma neste último caso era que a atleta reduzisse seu nível de testosterona a 10 nmol/L por pelo menos 12 meses antes de começar a competir e o mantivesse nesse patamar para seguir em atividade.
Baseada nessa regra, a CBV (Confederação Brasileira de Voleibol) autorizou a jogadora de vôlei Tifanny Abreu a competir na Superliga e recentemente não permitiu a inscrição de outra atleta transexual, Mabelly Gonçalo de Souza, por não cumprir os critérios.
Procurada pela reportagem, a confederação afirmou nesta quarta que, "com a recente divulgação das novas diretrizes do COI, aguarda o posicionamento da FIVB [federação internacional] para definir seus critérios em relação ao tema". A FIVB não respondeu se pretende alterar sua política.
Neste ano, em Tóquio, a halterofilista neozelandesa Laurel Hubbard tornou-se a primeira atleta abertamente transgênero a competir nos Jogos Olímpicos, também com base na regulação hormonal.
Agora, o COI abandona sua pretensa busca por objetividade. Na avaliação do comitê, basear os critérios apenas nesse ponto, além de insuficiente, não se mostrou o caminho mais adequado para tratar do tema.
"O guia está rompendo com a noção de que existe um único limite de testosterona –seja 10 nmol, 5 nmol ou qualquer outro– que determina a vantagem competitiva em todos os esportes. Nosso processo nos ajudou a perceber que não há consenso científico sobre como a testosterona afeta o desempenho atlético. E há uma razão muito simples para isso: bom desempenho significa coisas muito diferentes em diferentes esportes. E os níveis de testosterona endógena afetam diferentes corpos de várias maneiras", afirmou o comitê em resposta enviada à reportagem.
O tom das diretrizes foi celebrado por entidades que advogam em causas ligadas a direitos humanos. A Shift, que ajudou o COI ao longo do processo de dois anos em que 250 partes interessadas foram ouvidas, elencou os pontos em que considera ter havido mais avanço.
Entre eles:
Buscar evitar suposições discriminatórias (por exemplo, com base na aparência física de um indivíduo) no desenvolvimento e implementação de critérios de elegibilidade, que afetam desproporcionalmente mulheres transgênero e mulheres não brancas do Sul Global.
Confirmar a rejeição de exames físicos invasivos e outros métodos de "teste de sexo" cientificamente infundados como formas de determinar a elegibilidade, que no passado levaram a formas graves de abuso.
Evitar que os critérios de elegibilidade infrinjam o direito à autonomia corporal, inclusive garantindo que tais critérios não pressionem direta ou indiretamente os atletas a se submeterem a tratamentos ou procedimentos médicos desnecessários de qualquer tipo.
A Athlete Ally foi na mesma linha e destacou a orientação para que o ônus da prova de uma alegada vantagem que uma atleta trans possa levar sobre competidoras cisgêneros passe ao órgão regulador daquele esporte, a partir de pesquisas confiáveis e revisadas por pares.
A dificuldade em estabelecer critérios de confiança nesses estudos tem sido um dos grandes dilemas em torno da discussão nos últimos anos. E nada indica que essa questão será mais fácil de resolver pelas federações internacionais, ainda que o COI se comprometa a ajudar na confecção dos regramentos.
No debate acalorado há quem defenda que uma atleta que passou pela puberdade masculina não possa de maneira nenhuma competir em categorias femininas. Também existem os defensores de que não haja nenhuma restrição para atletas identificadas como mulheres.
Joanna Harper, professora especializada em desempenho atlético transgênero na Universidade Loughborough (Reino Unido) e ela própria uma corredora trans que transicionou por volta dos 20 anos, defende a possibilidade de encontrar um meio do caminho pela regulação, mas isso ainda demandará muitos anos de estudo.
Harper também participou do processo de consultoria junto ao COI e disse ao site Los Angeles Blade ver muitas coisas boas nas novas diretrizes, porém discordou da ausência de presunção de vantagem entre mulheres trans no esporte. Pôs ainda em questão a possibilidade de que entidades apresentem evidências sólidas imediatamente.
"Não há dúvida de que as mulheres trans são, em média, mais altas, maiores e mais fortes do que as mulheres cisgênero e que essas são vantagens em muitos esportes", declarou.
"Não há razão para sugerir que as organizações esportivas precisam ter pesquisas robustas e revisadas por pares antes de colocar quaisquer restrições aos atletas transgêneros. Essa pesquisa levaria anos ou talvez décadas para ser concluída. Os órgãos reguladores do esporte precisam tomar decisões agora, e não é despropositado impor algumas restrições às mulheres trans em esportes de elite", argumentou.
A Shift reconhece que a partir de agora o sucesso dos princípios estabelecidos depende de como eles serão implementados pelas entidades reguladoras.
"O COI precisará desempenhar um papel ativo e contínuo a esse respeito. Além disso, a adoção de uma estrutura voltada para o futuro não aborda, por si só, os danos que ocorreram no passado", ponderou. "Embora marque uma mudança importante na abordagem do Movimento Olímpico para a questão da elegibilidade, ela continua a ser baseada em uma noção binária de gênero. Serão necessários mais trabalhos sobre a inclusão de atletas não binários ou com identidades não conformes de gênero."
A World Athletics, federação internacional de atletismo, se manifestou após a publicação das diretrizes e disse que suas polêmicas regras de elegibilidade permanecerão em vigor.
Além de um limite mais baixo para o hormônio (5 nmol/L), elas determinam que mulheres com altos níveis de testosterona, mesmo produzidos naturalmente, precisam tomar medicamentos para reduzi-los se quiserem competir em provas de 400 metros a 1.500 metros. A medida atinge principalmente atletas com diferenças no desenvolvimento sexual (que pode gerar uma mistura de características físicas, genéticas e hormonais masculinas e femininas).
O caso mais famoso de uma corredora afetada é o da sul-africana Caster Semenya. A bicampeã olímpica se recusou a passar por tratamento hormonal e não pôde defender seu título nos 800 m nas Olimpíadas de Tóquio.
A proibição foi contestada sem sucesso por ela na Corte Arbitral do Esporte e na Suprema Corte da Suíça. Após os Jogos, veio a público que os autores de um dos estudos em que a federação afirma ter se baseado para justificar o veto corrigiram sua argumentação, pois não haveria como provar o nexo causal entre níveis elevados de testosterona e desempenho atlético superior de atletas femininas de elite.