Outras modalidades

Acidente de trânsito é realidade no ciclismo brasileiro

24 mar 2013 às 10:45

A reação contra o atropelamento do jovem David Souza dos Santos, na Avenida Paulista, dois domingos atrás, foi imediata. Um sem número de mensagens nas redes sociais, protestos e manifestações no local do acidente, clamor por mais segurança. Quatro dias depois, a principal ciclista do País, Clemilda Fernandes, foi atropelada por um caminhão, que também fugiu sem prestar socorro e ainda não foi identificado. Mais cedo, naquela mesma quinta-feira, 14 de março, um ciclista já havia morrido atropelado, enquanto treinava em Bauru, no interior de São Paulo. Nem mesmo o Comitê Olímpico Brasileiro (COB) ou a Confederação Brasileira Ciclismo (CBC) expressaram qualquer revolta com os acidentes, que têm sido recorrentes para a modalidade no Brasil. Esse é o retrato de um esporte que tem que conviver diariamente com o risco de acidentes nas estradas, mas já está tão calejado que não mais se choca.

Clemilda, que passou um dia e meio na UTI e ficou uma semana internada em um hospital de Goiânia, com um pulmão perfurado, duas costelas fraturadas e a mandíbula quebrada, está longe de ser um caso isolado no ciclismo de alto rendimento no Brasil. Só a equipe de Ribeirão Preto, que liderou o ranking brasileiro de 2012, teve que competir sem dois atletas na última Volta Ciclística de São Paulo, principal prova do calendário nacional, porque Gideoni Monteiro e Felipe Nardin haviam sido atropelados dias antes. Ambos ainda sofrem com as sequelas.


Na própria família Fernandes, que domina o ciclismo de estrada brasileiro há mais de uma década, o caso de Clemilda não é inédito. Uênia, prima dela, convive até hoje com as sequelas de um atropelamento ocorrido em 2003. Na ocasião, um carro invadiu o acostamento e freou propositalmente na frente da atleta, que se chocou com a traseira do veículo. A placa do carro foi identificada, mas, como ela era clonada, o infrator nunca foi encontrado. A ciclista sofreu cortes na face, passou por cirurgias plásticas, mas ainda mantém as cicatrizes da irresponsabilidade.


Nem o segundo caso na família motiva Janildes Fernandes, de 32 anos, irmã mais nova de Clemilda, que tem 33, a brigar por mais segurança no seu esporte. "A gente já lutou tanto, já pediu tanto, e nada acontece. A gente se dá por vencido. Acabaram as forças", admitiu a ciclista.


Melhor brasileira no ranking mundial, Clemilda entrava na GO-020, vindo da alça de acesso da BR-153, em Goiânia, quando foi atropelada. Aquele trecho da estrada que liga a capital goiana a Bela Vista de Goiás não tem acostamento e a ciclista teve que dividir espaço com um caminhão, ambos em alta velocidade. A carroceria a pegou por trás e jogou ela para longe. O motorista fugiu sem prestar socorro. Ninguém anotou a placa. "O caminhão pegou na costela dela", contou Janildes, que estava a cerca de 60km de lá, também treinando, quando soube do atropelamento da irmã.


O acidente, porém, era só questão de tempo. Janildes lembrou que há alguns anos cobrou o então senador Demóstenes Torres e o então ministro do Esporte Orlando Silva contra o fim do acostamento no perímetro urbano da BR-153, o que aumentaria a insegurança dos ciclistas goianos. Foi ignorada, segundo ela.


A solução para o problema, na opinião de Janildes, seria a construção de um velódromo, onde os ciclistas poderiam simular algumas situações de corrida. "A gente compete com os carros. Sai no trânsito a 60km/h", explicou.


Para o técnico da seleção brasileira feminina de ciclismo, o ex-atleta Cássio de Paiva, a insegurança diária, com o prolongado risco de acidentes, reduz a qualidade e a potencialidade dos treinos e atrapalha a modalidade no Brasil. O que ele aconselha para suas comandadas é andar sempre em grupo, se possível em estradas com acostamento. Mas ele mesmo ressalta que isso nem sempre é possível, principalmente no interior do País.


O treinador não acredita que o acidente com a principal atleta da sua equipe possa desestimular outras atletas. "Ninguém vai deixar de treinar. Elas se preocupam com o estado de saúde da Clemilda, perguntam. As mais novas ficam mais assustadas", relatou.


HISTÓRIA RECORRENTE - Ainda não há previsão para que Clemilda volte a competir. Em outros dois casos parecidos com o dela, até agora a recuperação não foi completa. Gideoni Monteiro, de 23 anos e campeão pan-americano em 2012, foi atropelado em 9 de outubro, dias antes do começo da Volta de São Paulo do ano passado. Ele treinava na marginal da Rodovia Abrão Assed, em Ribeirão Preto, quando um caminhão saiu de uma estrada de terra e o acertou de frente. A jovem promessa brasileira, esperança de um bom resultado na Olimpíada de 2016, teve uma fratura exposta no cotovelo direito e ficou três meses sem treinar.


Aos poucos, está voltando às competições. Na semana passada, Gideoni foi o quinto colocado no Giro do Interior de São Paulo, mas ele ainda se vê longe da melhor forma. "Fiquei um pouco traumatizado e redobrei mais ainda os cuidados. Aos poucos vou retomando a confiança em mim", disse o jovem ciclista.


Poucos dias antes, em 22 de setembro, Felipe Nardin, outra revelação do ciclismo brasileiro de estrada, havia sido atropelado em Cerquilho, também no interior paulista. Era um sábado de manhã quando ele foi atingido por trás por um veículo que vinha pelo acostamento na Rodovia SP-127. "Como era cedo, acho que era alguém voltando da balada", apontou. Jogado num gramado pelo carro (que fugiu sem prestar socorro), o garoto de 21 anos sofreu fratura exposta na clavícula e quebrou duas costelas. Ficou três meses imobilizado e só no fim de janeiro é que voltou a pedalar.


"Agora estou sem equipe. Fiquei todo esse tempo afastado, não participei da principal competição do País e fiquei meio esquecido. Mas pretendo voltar a competir", revelou Felipe, quatro vezes campeão paulista nas categorias de base e vice-campeão da Volta de Juventude (Sub-18) no Uruguai.


Com os acidentes de Gideoni e Felipe, Marcelo Donabella, técnico da equipe de ciclismo de Ribeirão Preto, viu seu grupo ficar sem dois dos oito atletas que competiriam na Volta de São Paulo de 2012. "A gente não tinha atleta de reposição. Largamos em desvantagem", explicou. "Os acidentes geraram um prejuízo não só esportivo como também financeiro", reforçou Danilo Terra, diretor-técnico do time. Sem bons resultados na principal competição do calendário, os patrocinadores se afastam e o incentivo à modalidade fica cada vez menor.


MORTE - Já na equipe de ciclismo de Itatinga (também interior de São Paulo), a perda foi irreparável. Principal incentivador do grupo amador, Hailton Pereira da Silva, o Ceará, morreu aos 48 anos enquanto treinava na manhã do último dia 14, na SP-225, em Bauru. Ele pedalava com companheiros do time quando um veículo que vinha em alta velocidade capotou diversas vezes na pista e caiu sobre ele. Ceará morreu na hora.


De acordo com Jurandir Raimundo da Costa, o Farofa, chefe da equipe de Itatinga, o motorista, de apenas 19 anos, fugiu com medo de ser linchado. Apresentou-se depois, mas não ficou preso. Ele deve responder por homicídio culposo.


A morte de Ceará, que era atleta amador, mereceu uma nota de "profundo pesar" no site da Federação Paulista de Ciclismo. Já o COB ou a CBC, que prestam auxílio a Clemilda, somente divulgaram, com atraso, a notícia do atropelamento da principal ciclista do Brasil. Nas redes sociais, não houve qualquer protesto ou revolta por mais segurança aos ciclistas depois de mais acidente no esporte.

Técnicos, atletas e dirigentes são unânimes em apontar que, diferente do ciclismo de lazer, não há uma solução a curto prazo para evitar novos atropelamentos no esporte. Todos aguardam o momento em que os motoristas vão se conscientizar no trânsito. "Até lá, é contar com a sorte e ter atenção", disse o técnico Cássio de Paiva. "Não adianta a Confederação fazer o máximo de esforço se 99% dos acidentes acontecem com o ciclista de passeio. Não tem remédio."


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