Os pilares da convivência entre a delegação da seleção brasileira que iria para a Copa do Mundo de 1994 foram escritos em um guardanapo.
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Na redação feita pelo então capitão Ricardo Gomes, um dos itens tratava de algo que tinha dado problema quatro anos antes: a divisão da premiação.
Se o trauma e as lições da má campanha e da má convivência na Itália ainda estavam presentes, a jornada nos Estados Unidos teria que prever igualdade na divisão do dinheiro.
A fatia seria a mesma não só entre os jogadores, mas também entre todos os membros da comissão técnica e estafe da seleção. De Romário, que viria a ser o melhor do mundo por causa do tetra, ao massagista Luizão.
O apoio foi unânime no grupo. O rateio deu US$ 80 mil para cada um -US$ 40 mil viriam da CBF e a outra metade, da Umbro, então fornecedora de material esportivo.
O montante era considerável para quem estava na base da pirâmide, sobretudo numa época de pareamento entre o Dólar e o recém-nascido Real.
A promessa inicial era US$ 140 mil para cada jogador. Como a divisão foi ampliada, eles abriram mão de US$ 60 mil. E zero arrependimento, sobretudo sabendo que o resultado foi o título que completa 30 anos neste 17 de julho.
"Foi uma decisão acertadíssima", resume Jorginho, lateral-direito de 1994.
A INFLUÊNCIA DO TRAUMA DE 1990
As marcas da caótica campanha da Copa de 1990 ainda estavam muito vivas. E a premiação foi uma das dores de cabeça do grupo treinado por Sebastião Lazaroni.
A CBF ajudou a piorar o contexto. Os jogadores receberiam um percentual do contrato com a Pepsi. Mas o valor informado a eles foi menor do que efetivamente estava no contrato. Isso vazou, e aí amplificou a tensão dentro de um grupo que já tinha seus problemas.
"A CBF, naquela oportunidade, não lidou com lisura com os jogadores, não custava nada falar, o valor é esse aqui, vai dividir por igual, acho que naquela oportunidade não foi feliz, e sinceramente, eu não sei como chegou, não sei se foi através de um empresário, não sei de quem foi, mas chegou às mãos dos atletas", contou Jorginho.
A questão da Pepsi ainda gerou outro episódio singular na preparação, que foi a foto dos jogadores com a mão no peito, cobrindo a logo da empresa. Quem puxou, segundo relatos de alguns atletas, foi Renato Gaúcho.
Américo Faria, supervisor da seleção nessas duas Copas do Mundo, conta que a situação sobre premiação se arrastou e atrapalhou o cotidiano do Brasil, que já tinha problemas táticos para resolver.
"A situação só foi resolvida quando já estávamos na Itália. Foi muito desgastante isso, foi um problema a mais que a comissão técnica teve que lidar. Em termos de seleção, nós éramos completamente leigos, ninguém tinha experiência de seleção. Era uma comissão inexperiente e uma diretoria também inexperiente", disse Américo.
COMO FOI PARAR NO GUARDANAPO?
Dez jogadores que estavam convocados para a Copa 1994 tinham em mente o caos que foi a Copa de 1990 e o quanto a divisão desigual da premiação contribuiu para isso.
Eles tinham ciência de que precisariam resolver a questão antes da viagem para os Estados Unidos. Aí, em uma das reuniões na concentração, veio a redação do "documento" no guardanapo.
"A gente fez os pedidos. Duas camisas por jogo, ingressos. Não gostaríamos que ninguém entrasse na concentração. Ninguém faria entrevista exclusiva com ninguém. E que a premiação deveria ser por igual. No momento em que ficaram definidas essas regras, facilitou muito o nosso trabalho, porque a gente não teve que se preocupar com nada além de jogar futebol e conquistar a Copa do Mundo", contou Jorginho.
Os "cascudos" do elenco puxaram o bonde das regras e os mais jovens aderiram.
O guardanapo foi entregue a Américo Faria, que fazia a ligação entre o grupo e a presidência da CBF - então com Ricardo Teixeira.
O IMPACTO PARA QUEM PRECISAVA
Américo já sabia quanto a CBF tinha à disposição para ratear e também curtiu a ideia de fazer parte da divisão geral.
Os jogadores sabiam que quatro anos antes ele e os demais membros da comissão técnica ficaram ressabiados por não participarem do rateio de forma igualitária.
Mas o efeito mais significativo disso foi para massagistas, roupeiros e outros profissionais da delegação brasileira que passaram longe de ganhar ao longo da vida o que os jogadores, de repente, faturam em um contrato.
O próprio Jorginho jogava no Bayern de Munique e ganhava 400 mil dólares mensais. Depois da conquista do tetra, assinou contrato com o Kashima Antlers do Japão, ganhando 2,5 vezes mais.
Embora os dólares da premiação da Copa não fossem mudar a vida de quem estava dentro de campo, a perspectiva de uma bolada gerava até brincadeiras com os mais humildes da delegação
"Quando os roupeiros e massagistas, que são aqueles que recebem menos, um assessor de imprensa, por exemplo, ficaram sabendo da premiação...O telefonista, por exemplo, o Alexandre, que depois virou basicamente o braço direito do Ricardo Teixeira, ficou com um sorriso que batia até na orelha. Eram 80 mil dólares!", lembrou Jorginho.
O massagista Luizão, nesta quarta-feira (17) com 80 anos, conversou com o UOL sobre o assunto em um dos legados da premiação da Copa 1994: um apartamento na Tijuca, bairro da Zona Norte do Rio.
"Então, um dos apartamentos, o imóvel em que eu moro atualmente, foi com esses valores que eu ajudei a complementar, e estou aquijá tem mais de 30 anos. Temos outras moradias, tem em Mauá um terreno, tem uma casinha lá. Nós estamos vivendo e continuando a trabalhar", disse Luizão, que agora está no America a convite do presidente Romário.
Segundo Jorginho, Antônio Assis, que era o roupeiro da seleção, comprou algumas casas e, com o aluguel delas, conseguiu certa estabilidade financeira. O lateral, por sua vez, reverteu o valor para fins assistenciais.
"Eu tinha muito desejo de desenvolver o meu próprio trabalho social dentro da minha comunidade, que é em Guadalupe, o Instituto Bola pra Frente. Mas naquela oportunidade, eu era vice-presidente do Centro de Cooperação para o Desenvolvimento da Infância e Adolescência (CCDIA) e doei toda a verba. Eles conseguiram comprar um escritório que servia um local onde eles faziam reforço escolar, foi um dos melhores investimentos da minha vida", disse Jorginho.
Para a seleção do tetra, o quanto a Copa do Mundo rendeu não foi o mais importante. O que valeu foi todo mundo ganhar junto.