Começa no próximo sábado (17) mais uma edição do Campeonato Brasileiro feminino de futebol. O torneio, cuja primeira edição foi disputada sem a mesma atenção em 2013, conta atualmente com duas divisões, que reúnem várias das camisas mais tradicionais do país.
A consolidação da competição nacional, que há oito anos acontece de forma ininterrupta, é um dos sinais de desenvolvimento do futebol feminino no Brasil, que entra na terceira década deste século vivendo o seu melhor momento -apesar dos freios colocados pela pandemia, que afetou o esporte de maneira geral.
Há outras conquistas recentes que indicam um caminho de evolução contínua, como a transmissão em TV aberta da última Copa do Mundo e o fato de que hoje, na CBF (Confederação Brasileira de Futebol), são duas mulheres as responsáveis por áreas estratégicas da modalidade: Aline Pellegrino, coordenadora de competições, e Duda Luizelli, coordenadora das seleções femininas.
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Apesar dos avanços, é inevitável pensar que muitos desses processos já poderiam estar consolidados há mais tempo, não fosse a proibição da prática do futebol feminino por quase quatro décadas.
Nesta quarta-feira, 14 de abril, completam-se 80 anos do decreto-lei 3.199, baixado pelo então presidente Getúlio Vargas, que impediu, de 1941 a 1979, as mulheres de poderem jogar bola no Brasil.
Técnica da seleção brasileira, a sueca Pia Sundhage se posicionou sobre o aniversário da proibição em suas redes sociais.
"Hoje é um dia simbólico no Brasil e em todo o mundo: celebramos os 100 dias para a Olimpíada. Também neste 14 de abril de 2021 há uma marca terrível para as mulheres brasileiras. Há 80 anos, o governo proibiu mulheres de jogar futebol. A lei existiu por 42 anos! Hoje é um dia para confirmar o que queremos fazer e ser", disse Pia em sua conta no Twitter.
Aira Bonfim, historiadora e colaboradora do Museu do Futebol na criação de audioguia sobre os cem anos de futebol feminino no país, destaca dois acontecimentos que foram decisivos para que fosse decretada a proibição.
Em comum entre eles, um mesmo aspecto: as mulheres ganhavam cada vez mais visibilidade em uma sociedade que negava a elas outros espaços que não o do lar.
No fim da década de 1930, os subúrbios do Rio de Janeiro eram uma espécie de epicentro feminino do futebol. Havia pelo menos 15 equipes cariocas formadas por mulheres, com destaque para o Primavera Atlético Clube, que chegou a publicar anúncio em jornal convocando meninas de 15 a 25 anos para participarem de uma peneira.
Em 7 de maio de 1940, dias depois do anúncio do Primavera, um leitor chamado José Fuzeira escreveu uma carta enderaçada ao presidente Getúlio Vargas, publicada no jornal Diário da Noite, externando a sua visão preconceituosa sobre o jogo praticado pelas cariocas.
Ainda em maio de 1940, no dia 17, Sport Club Brasileiro e Casino Realengo, equipes femininas do subúrbio do Rio, foram convidadas para uma exibição no Pacaembu, semanas depois da inauguração do estádio. Os times fariam a preliminar de um São Paulo x Flamengo dos homens.
Se por um lado o jornal Correio Paulistano disse que a vitória do Casino Realengo por 2 a 0 apresentou um futebol "de técnica apreciável", a atenção que o jogo ganhou também gerou novas impressões contrárias ao futebol feminino estampadas na imprensa.
Em 1941, menos de um ano depois do jogo de exibição das cariocas no Pacaembu, o decreto-lei 3.199 estabeleceu a criação do Conselho Nacional de Desportos, que ficaria sob o guarda-chuva do então Ministério da Educação e Saúde, e anunciou a proibição de práticas esportivas que, na visão das autoridades, poderiam fazer mal à saúde das mulheres.
"Nenhuma proibição surge do nada. Tem a ver com a visibilidade que jogadoras do subúrbio do Rio vão ganhar. Elas passam a aparecer demais, na opinião dos homens da época. Recebiam convites para saírem do Brasil, ocupavam espaço no jornal. E aí você joga um balde de água fria e desmoraliza a modalidade", diz a historiadora Aira Bonfim.
Mesmo com a proibição, o futebol seguiu praticado por mulheres em todo o Brasil nas décadas seguintes, de maneira clandestina. Nos anos 1950, Minas Gerais e Rio Grande do Sul se consolidaram como centros onde a modalidade se manteve ativa apesar do decreto.
Em São Paulo, as vedetes do teatro de revista participaram de uma partida no Pacaembu, em 1959, para arrecadar fundos destinados ao Hospital dos Atores. Apesar do caráter amistoso e beneficente do jogo, voltou a ser discutido o risco que o futebol supostamente trazia para suas praticantes.
"Já se sabe da proibição, mas você apresenta o futebol feminino como espetáculo. Usa-se esse artifício com essas mulheres, que já eram famosas e jogavam bola de roupa curta. Não é um jogo bonito, mas ele serve para voltar a falar sobre o assunto. E, de novo, há a reincidência de se falar sobre a proibição", afirma Bonfim.
Com as mulheres ganhando destaque indesejado na opinião "defensores da moral e dos bons costumes", o governo, por meio do Conselho Nacional de Desportos, reescreveu o decreto-lei em 1965 e passou a incluir o futebol, dessa vez nominalmente, como esporte proibido para elas.
A proibição só foi encerrada em 1979, com sua regulamentação concretizada quatro anos depois. A partir daí, os clubes voltaram a se organizar para a prática do futebol feminino, dando início a um processo lento de evolução e conquistas das mulheres nas últimas décadas.
"É muito legal olhar para o Campeonato Brasileiro e ver o histórico de presença no calendário, com participação dos clubes, engajamento do público. Mas ele é prejudicado por esses 40 anos de proibição. Apesar de as brasileiras sempre terem jogado mesmo na clandestinidade, até a década de 1980 foi um nível bastante amador", analisa Aira Bonfim.
"Hoje a gente consegue pautar uma iniciação desse projeto de profissionalização do futebol feminino. Que tenha uma construção independente do masculino. E o engajamento de mulheres em instâncias de poder no futebol brasileiro. Como a Duda Luizelli, a Aline Pellegrino, a Pia [Sundhage]. É importante pensar que meninas poderão sonhar em ocupar esses lugares no futuro", completa.