A Conmebol anunciou nesta terça-feira (13) que deverá receber 50 mil doses da CoronaVac, doadas diretamente do laboratório chinês Sinovac. A entidade tem a pretensão de usar a vacina para imunizar jogadores e comissões técnicas que disputam a Libertadores, Sul-Americana e Copa América desta temporada. A proposta foi duramente criticada por dois dos médicos mais combativos na luta contra o avanço da Covid-19 no Brasil.
Tanto o médico e neurocientista Miguel Nicolelis como o médico e epidemiologista Paulo Lotufo dizem não acreditar que a vacinação prometida pela Conmebol será colocada em prática.
"É um 'teatro do absurdo'. O futebol extrapola o nosso grau de surrealismo. E mostra um sintoma da nossa sociedade", afirmou Nicolelis. Para o professor catedrático da Universidade de Duke, nos Estados Unidos, a proposta da Conmebol significa um 'fura-fila' da vacina e é "imoral".
"É inacreditável e não faz sentido. A menos que o futebol crie um mecanismo ilegal de vacina. O futebol pensa que está acima de qualquer lei e código moral. Para quem gosta de futebol, é um chute no estômago", criticou o médico e neurocientista.
A ideia da confederação sul-americana de futebol é vacinar 4 mil pessoas, como mostrou o colunista do UOL Marcel Rizzo. Mas a entidade ainda não tem um plano claro de como isso será realizado.
"É inadmissível. Um absurdo total, do ponto de vista ético e operacional. Não há porque privilegiar jogadores de futebol, que não fazem parte de grupos prioritários. E se é doação, que seja usada para imunizar profissionais da saúde, professores e outras pessoas que necessitam", justificou o infectologista Paulo Lotufo, que classificou a empreitada como uma jogada de marketing do laboratório chinês Sinovac.
OBSTÁCULOS LEGAIS
Além da questão legal, há outros aspectos que podem travar a vacinação proposta pela Conmebol. Como as empresas produtoras de vacinas não podem vender o produto para o setor privado, o acordo para ter a CoronaVac foi costurado pelo presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou. Assim, o imunizante deve ser enviado para Montevidéu e, da capital uruguaia, partiria para que a Conmebol distribuísse as doses para as confederações nacionais, que ficariam responsáveis pela aplicação.
No Brasil, porém, há um problema que é difícil de ser driblado. Embora a Câmara dos Deputados tenha aprovado no dia 6 deste mês Projeto de Lei que permite a compra de vacina contra covid-19 por empresas e retira a obrigatoriedade de que todas as doses adquiridas sejam doadas ao SUS (Sistema Único de Saúde), a lei ainda não entrou em vigor.
A legislação atual até possibilita que o setor privado compre vacinas. No entanto, exige que seja seguido o Plano Nacional de Imunização, que diz que enquanto não for concluída a vacinação dos grupos prioritários no país, todas as doses adquiridas devem ser doadas ao SUS. Somente após a conclusão da vacinação dos grupos prioritários é que a iniciativa privada poderá comprar as vacinas e aplicar em seus funcionários, mesmo assim terá de repassar metade para o sistema público.
Contrário ao retorno do futebol, Miguel Nicolelis, torcedor dos mais fervorosos do Palmeiras, admite que não tem assistido aos jogos do Verdão, tamanho é o desalento com o avanço da pandemia no Brasil.
"Olha o número de surtos nos clubes. Tivemos o [ex-lateral] Branco, dirigente da CBF, internado na UTI, jogadores relatando dificuldade depois de terem Covid. Não assisti ao jogo domingo [final da Supercopa do Brasil, entre Palmeiras e Flamengo]. Minha mãe perguntou se eu estava doente porque não assisti. Mas perdi o prazer. Olho para as declarações do presidente da CBF, Rogério Caboclo, naquela reunião que vazou, e fico horrorizado. É um comportamento similar a quem comanda o país. Um grau de truculência assustador", questiona o neurocientista.
Um dos argumentos que pode ser usado pela CBF para vacinar os jogadores com as doses recebidas da CoronaVac é apelar para o artigo 217 da Constituição Federal -a Justiça comum apenas admitirá ações envolvendo o esporte após esgotarem-se as instâncias desta área. Para a advogada Vera Chemim, especialista em direito constitucional, a tentativa não deve prosperar.
"Nesse caso prevalecem as regras previstas no Plano Nacional de Imunização, por se tratar de uma situação excepcional", explicou a advogada, deixando claro que enquanto a legislação atual valer, todas as doses que entrarem no Brasil têm de ser doadas ao SUS.