Há um ano, em 16 de março de 2020, a FPF (Federação Paulista de Futebol) anunciava a suspensão dos seus campeonatos por tempo indeterminado em decorrência da pandemia, assim como a CBF (Confederação Brasileira de Futebol) havia feito 24 horas antes. No dia seguinte, seria confirmada a primeira morte por Covid-19 no país.
A decisão partiu da própria federação paulista, antecipando-se ao governo estadual, que só decretaria a quarentena em São Paulo na semana seguinte.
Nesta terça-feira, 16 de março de 2021, o futebol está novamente paralisado no estado. Agora, no entanto, clubes e FPF são contrários à medida e começam a se movimentar para transferir partidas do Paulista para fora do estado. A CBF não prevê adiamento da Copa do Brasil.
Atualmente, o Brasil passa por seu pior momento na pandemia. São 54 dias de média móvel acima das mil mortes diárias -em três oportunidades, os óbitos ultrapassaram a casa dos 2.000 registros em 24 horas. Até o momento, 279.602 brasileiros perderam a vida -12 mil apenas na última semana.
"Nós fizemos um protocolo de grande sucesso para que os jogadores tenham segurança de jogar e não ser o futebol um disseminador do vírus [na sociedade]. Mas quero deixar claro que quem decide o que deve parar ou não, como o futebol e toda a economia, é o gestor público, não a CBF", afirma Clóvis Arns, presidente da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia) e consultor da CBF.
Especialistas contrários à manutenção do futebol neste estágio da pandemia afirmam que a atual realidade brasileira e os surtos dentro dos times deixam claro que a decisão correta seria parar.
"Não existe lógica em uma atividade totalmente não essencial ser executada com tal intensidade de contato entre as pessoas. Não existe sentido em viagens interestaduais ou intraestaduais, com uma equipe de dezenas de pessoas, um cluster [polo] de altíssimo risco de contaminação, com potencial transbordamento da contaminação para outras pessoas", afirma Márcio Bittencourt, epidemiologista do Hospital Universitário da USP.
Ele entende que um esquema de "bolha" seria a única solução possível para viabilizar o futebol atualmente.
"A gente sabe como fazer [o protocolo], o esquema de testagem, ao ar livre, sem público. São medidas que com certeza diminuem o risco, mas não agora. O momento é de fechar, de fazer um lockdown de 15 dias. Quem sabe depois disso, de mais 15 dias, um mês, vamos ver os efeitos", afirma Natália Pasternak, cientista-pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas da USP.
Após ser suspenso, no ano passado, o futebol demorou quatro meses para voltar a ser jogado no Brasil.
Em São Paulo, teve reinício no fim de julho, quando a média móvel nacional era de cerca de mil mortes por dia e em tendência de queda. O Campeonato Brasileiro começou no início de agosto, sob panorama semelhante –mas enfrentando surtos de Covid em algumas equipes no seu início.
Defensores da manutenção do futebol se apoiam no estudo conduzido pela CBF durante a temporada 2020 e entendem que o protocolo aprovado no meio do ano passado segue seguro.
Segundo a confederação, não há evidência de transmissão do vírus entre jogadores de equipes diferentes durante os jogos.
Para atestar isso, o comitê médico da entidade monitorou os rivais das equipes que registraram surtos, do momento do primeiro teste positivo até o fim dos 14 dias seguintes, e não encontrou infectados nos adversários.
A entidade diz ter percebido que o vírus detectado em jogadores de times do sul do país apresenta peculiaridades regionais diferentes, por exemplo, do encontrado em jogadores de times do nordeste, o que indicaria a não transmissão viral entre equipes.
"Isso não basta [não contágio em campo]. Basta eles transmitirem dentro da mesma equipe, para os funcionários, nos vestiários, para porteiros, para familiares. Se existe transmissão, não interessa para quem", critica Pasternak.
A CBF argumenta que ao identificar e isolar casos assintomáticos com os testes regulares, retira de circulação da sociedade indivíduos que poderiam, potencialmente, seguir infectando outras pessoas.
Segundo a entidade, e também é o entendimento de dirigentes dos clubes, é fora do ambiente esportivo, nos momentos de lazer ou então quando estão de férias, que os jogadores desrespeitam os protocolos sanitários.
No último domingo (14), por exemplo, Gabriel Barbosa, o Gabigol, foi flagrado pela Polícia Militar de São Paulo numa festa clandestina em um cassino ilegal.
Nos títulos recentes de Palmeiras e Flamengo, houve grandes aglomerações de torcedores comemorando, muitos sem máscara.
Clóvis Arns diz que uma das atuais reivindicações dos consultores da CBF é uma melhora na prevenção fora de campo, com campanhas de conscientização e até punições aos clubes.
"A torcida que causa aglomeração está infringindo uma das orientações mais básicas de prevenção. Está sendo debatido que de alguma forma o clube seja punido se isso acontecer. Isso é a preocupação de nós, consultores", afirma.
Pasternak e Bittencourt também entendem que é um contrassenso o futebol estadual parar, mas o nacional seguir.
"Quanto menos transporte [para viagens], menor o risco. Menos pior se fossem mantidos só torneios estaduais. Mas como clubes não controlam surtos internos, viajar de ônibus pode transmitir o vírus dentro do próprio time", comenta.
Pasternak propõe que, após uma suspensão completa, primeiro sejam retomados os torneios regionais, depois os nacionais.
Ambos alertam que a condição física faz com que atletas tenham menos chances de apresentar quadros graves de Covid. Porém, uma sequela respiratória pode significar o fim da carreira para o jogador.
Contudo, segundo Arns, 90% dos jogadores testados na temporada 2020 não apresentaram sintomas, e os 10% restantes foram casos leves.
Opiniões favoráveis à manutenção do jogo também argumentam que em Portugal o futebol não parou durante a fase mais crítica da pandemia. Lá, no entanto, todo o país adotou um rígido e duradouro esquema de 'lockdown', decretado pelo primeiro-ministro, António Costa (Partido Socialista).
"A gente tem que ter empatia e solidariedade. Por isso é importante que o futebol siga e cumpra as determinações do gestor público. Talvez dar um passo atrás para voltar com segurança no futuro. Se o momento epidemiológico exigir parar, é hora de se preparar melhor para quando voltar", afirma Arns.