A história parece um conto de fadas: o príncipe se encanta com as princesas e as ajuda nas adversidades do início de carreira. Também as acompanha na travessia da perigosa floresta em que o Lobão é o mocinho. Estamos falando da indústria fonográfica. O príncipe é o músico Sérgio Dias, um dos melhores guitarristas do País e que tem no currículo a ilustre participação na melhor banda que este Brasil já teve: Os Mutantes. As princesas são as cantoras e compositoras curitibanas Xanda e Naína.
Em uma noite de domingo, passando por Curitiba, Sérgio Dias foi ao bar Era Só o que Faltava. Apresentavam-se Naína e Xanda, no espetáculo intitulado "Elas Tocam MPB". O show de duas vozes e violões tem um set em que as meninas mostram apenas as composições próprias e outro em que elas tocam músicas que gostam. Entre essas músicas, é claro, existem muitas dos Mutantes. Elas tocaram e Sérgio gostou tanto que decidiu subir ao palco. Deu uma canja, voltou pra mesa, voltou pro palco, voltou pra mesa e voltou pro palco. Ficando nesse vai-e-vem de prazer. Aí nasceu a amizade.
O Mutante ficou conhecendo as músicas próprias das meninas. Gostou tanto que as convidou para gravar uma demo em seu estúdio particular. Elas foram, ficaram hospedadas na casa dele e gravaram o single "Outono". A experiência deu tão certo, que Dias as chamou de novo para gravar o disco inteiro, sem cobrar nada. Se você ainda não está entendendo porquê, leia abaixo a entrevista dele e a matéria que conta um pouco da recente formação da dupla.
Folha: Você que tem história na música brasileira, viaja fazendo shows por todo o País e de repente escolhe duas artistas do Paraná, Naína e Xanda, para produzir um disco. Por que?
Sérgio Dias: Pela originalidade, pela beleza das composições e pelas letras excelentes. Elas são a representação atual da juventude. São refrescantes. Elas não estão preocupadas em fazer sucesso e para isso seguir um "padrãozinho"imposto. Arte não é padrão.
Folha: Você vai produzir o disco e tocar com elas. Como será a sua participação?
Dias: Vou fazer tudo o que for necessário para tirar o melhor delas. Vou produzir, tocar, facilitar, enfim, tudo, até dar uns tapas nelas se preciso (risos), mas isso não será necessário.
Folha: Você está fazendo isso em outros estados também?
Dias: Não. Olha, o Paraná é um estado especial e vocês (paranaenses) não sabem disso. Vocês são ímpares, são um País dentro de um outro País. É um lugar limpo internamente, talvez porque tenha sido menos atingido pela revolução de 1964 do que São Paulo e Rio de Janeiro em termos de liberdade de coração e mente. Mas falta aos paranaenses um auto-conhecimento, uma consciência do que vocês têm por aqui. Essas meninas são um exemplo disso. O certo seria até eu vir para cá e fazer todo o trabalho aqui, sem que elas precisassem ir a São Paulo. O Paraná deveria ter uma estrutura social e cultural autônoma, independente de São Paulo e Rio de Janeiro.
Folha: Mas a mídia não está centralizada no Rio e São Paulo e por isso é preciso ir até ela?
Dias: A música, a mídia ou a TV estão nas mãos de seis ou sete pessoas que mandam em tudo. Mas o PIB do Paraná deve ser considerável. A independência dos estados da Federação é importante. O Paraná e os paranaenses devem ser patriotas, no melhor sentido do termo, e lutar por suas coisas. A cultura está nisso. Qual é a imagem do Paraná para o Brasil? O Rio de Janeiro tem o samba, as mulatas e o mar. São Paulo tem a grana, é a cidade que não pára. A Bahia tem o trio elétrico, as baianas, a cozinha. Minas Gerais é o come quieto. E o Paraná? Um estado rico como este tem que lutar para mudar essa centralização da mída. Quando o Paraná sacar que pode ficar independente, vai crescer dez vezes mais rápido. Vai manter o dinheiro aqui. Mas para isso tem que pensar: sou paranaense, então sou melhor, e não ficar botando pra baixo, achando que a grama do vizinho é mais bonita. Se ela é mais bonita, fala com o vizinho e aprende a fazer a grama igual.
Folha: Essa análise vem de um olhar estrangeiro que você teve nas suas vindas ao Paraná?
Dias: Eu sou paulista até morrer. Quando morei no Rio, comprava leite paulista, manteiga paulista e tenho o maior orgulho de minha cidade. Mas também tenho um amor desapegado. Sei que o Paraná tem que lutar para evitar essa devastação econômica e social que aconteceu em São Paulo. E preservar a pureza de sua cultura, que é riquíssima. Cadê as gravadoras procurando os músicos paranaenses? Elas deveriam estar aqui. Mas o mercado do Rio de Janeiro é ditador e invadiu e corrompe tudo com o jabá (dinheiro dado às rádios para que toquem as músicas pedidas pelas gravadoras). Isso vem da revolução de 64, que, no Brasil todo mundo finge que não aconteceu. O alvo da revolução era promover o emburrecimento das pessoas. A revolução conseguiu matar a cultura brasileira. Cadê hoje um novo Tom Jobim, uma Elis, os Mutantes? Acabou o talento? O que existe aí é um mercado de peixes, uma imundície. Não é música nem arte, é business.
Folha: Você está viajando pelo País lançando seu novo disco. Como está sendo?
Dias: Eu fiz este disco por causa da minha filha. Notei que ela tinha ídolos mortos. Fiquei pensando o porquê disso. Acho que as pessoas estão sentindo falta de algo que reflita o interior delas. Elas são os filhos do silêncio e eu vou procurar revolucionar isso. Fiz esse disco para o Brasil, para a garotada que é o pilar da nossa raça. Mas não sou só eu que estou nesta batalha. Tem que quebrar essa coisa de falsidade do mercado. Quero a liberdade, ser honesto com o trabalho. Chega de Feticeira, de Tiazinha, Quero a beleza interior e isso eu vi na Xanda e na Naína, que além de também terem a beleza física - pois são lindas - têm muita beleza interior.
Folha: Mesmo assim, seu disco não toca nas rádios. Como se vence a batalha contra a ditadura da mídia?
Dias: Não se pode pensar em fazer as coisas só porque elas vão tocar no rádio ou não. Mesmo com os Mutantes, o disco que mais vendeu foi o "Tudo foi feito pelo sol", que vendeu 35 mil cópias. No entanto, hoje os Mutantes ganham quatro páginas no New York Times. Mozart não tocava no rádio. Nos meus shows tenho um público maravilhoso. Vejo crianças de seis anos cantando. E não são hits que eu toco. São coisas novas, é o disco inteiro e depois toco alguma coisa de Mutantes.
Esse contato direto com o público talvez seja o mais importante para o artista...
Dias: A esposa do artista é o público. Não tem que ter intermediário. O público é que te faz. Se tocar no rádio é porque as pessoas gostaram. A mídia central não tá funcionando assim como o governo não está funcionando. O povo deve se auto gerir, tem que se determinar. Não anular voto, mas respeitar as pessoas em termos de escolha. E usar isso.
Já existe uma espécie de rede independente de rádios e meios alternativos de se furar o esquema das gravadoras, como os discos independentes vendidos em bancas de jornais...
Dias: É o trabalho de pessoas concretas e reais. É preciso gerar atitudes em conjunto. O Lobão é extremamente inteligente e não precisa de mim. Mas as pessoas podem fazer as coisas juntas. Arnaldo Antunes é um gênio. Todos têm seu público. Os próprios músicos já têm seus estudios. As gravadoras vão dançar porque os artistas não vão mais precisar de intermediários.
Você já tem em mente novos projetos, um futuro disco?
Dias: Meu projeto musical atual é produzir a Xanda e a Naína.
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