O Fest-Dança 2000 Curitiba, realizado de 3 a 8 desse mês, conseguiu seu objetivo maior de retratar os caminhos percorridos pela dança, atualmente. Por intermédio de companhias nacionais e internacionais que apresentaram suas coreografias, o Festival mostrou um panorama completo, cheio de estilo e de surpresas. A diretora da Cia de Dança de Minas Gerais, Cristina Machado, circulou pelo festival como observadora convidada e deu sua opinião sobre o que viu.
Folha: Entre as companhias que estiveram no festival qual a que melhor retrata os novos rumos da dança?
Cristina: A Maguy Marin, da França, deixou bem claro em que nível de aprofundamento de pesquisa está atuamente a dança moderna. Foi essa companhia que semeou uma atitude ou um posicionamento muito significatico na Europa e na França, principalmente.
F: Qual é esse posicionamento?
C: Acho que eles partiram da descodificação da dança clássica, tentando tornar o movimento mais próximo da expressão. Ser criado e elaborado a partir de uma tentativa de expressão e de retratação de um conteúdo ou de uma emoção. Isso gerou a necessidade de pesquisa.
F: Como é realizada essa pesquisa?
C: Como tudo no mundo, a dança evolui a partir da ansiedade do homem que vive naquele momento. Os coreógrafos são os profissionais que buscam a criação como o ar que respiram. Eles praticamente não conseguem viver se não estiverem trabalhando na elaboração do movimento. Faz parte da vivência deles. O que a gente tem visto, como retrato da dança contemporânea, é a naturalidade. As pessoas vêm buscando uma postura mais honesta de retratação do que estão querendo dizer. Mesmo pintando o corpo ou vestindo máscaras pretendem tirar os véus que existiam quando se queria contar uma história verdadeiramente.
F: Esses veús estariam relacionados à dança clássica?
C: A dança clássica exige um código muito rígido, onde a técnica é a primeira coisa considerada e só depois o bailarino começa a trabalhar a sua expressão artística. A dança clássica é bem seletista, exige um perfil, um corpo, peso e medida perfeitos. Nada contra. A dança clássica é maravilhosa, mas vem enquadrada. Acho até que hoje, a forma de ensinar o clássico pode eatar mudando para que o bailarino não faça só parte de um corpo de baile de mais de 200 pessoas como espelhos uma das outras, mas valorizando a expressão individual.
F: Como isso ocorre no balé moderno?
C: O clássico valoriza a estética, a beleza visual, o sentido do etéreo, os corpos como uma paisagem. O balé moderno é completamente diferente. Há uma limpeza feita pelo impulso, pela intenção e pelo conteúdo emocional. Não é mais por onde passam braços ou a altura das pernas. Para ser um bom bailarino de dança moderna não é necessário ter feito os nove anos de dança clássica mas é preciso conhecer algumas bases porque não tem como individualizar o ensino. A dança clássica apóia todas as outras.
F: Sobre a fusão de linguagens: dança, teatro, literatura, circo, isso tem sido uma tendência?
C: Cada vez mais se procura a interação. Detesto o termo globalização, ainda mais para a arte, mas a vontade de estar ouvindo, compreendendo, assimilando vários códigos, possibilita expressar melhor ou atingir as platéias de modos diferentes. Isso tem sido o diferencial de alguns grupos.
F: Você poderia citar algum exemplo?
C: Trazendo para o Fest-Dança, podemos considerar a Companhia Maguy Marin, que tem uma proposta de investigação de pessoa e de conteúdo, buscando na literatura, no auto-conhecimento, na auto-expressão, na explosão da personalidade a sua maior dedicação. Não é qualquer grupo que consegue fazer isso. Na coreografia "May B", Marin apropria-se dos personagens de Becket, mescla tudo e ainda consegue uma identificação muito grande com o público. Isso é valoroso. Exige um trabalho de corpo exautivo, tanto que essa coreografia já tem 19 anos, para chegar à sintese dos personagens e conseguir colocá-los em grupo, dançando. Cada individuo teve de buscar individualmente a sua expressão para juntarem-se só depois. Considero esse trabalho imortal, genial, um grande prazer.
F: Sobre os grupos brasileiros que estão seguindo esse caminho de fusão, você observou alguma novidade?
C: Vou deixar um questionamento: até que ponto a gente deve usar a nossa arte em função de uma leitura muito pessoal e que não permite abstração da platéia, mesmo que ela não compreend profundamento o tema? Não dá para abrir e fechar o espetáculo só para quem conhece Becket ou Marguerite Duras. Falta a nós, que ainda estamos pesquisando, um pouco mais de consideração ao outro que está assistindo. A emoção não deve ficar aprisionada no palco, como no espetáculo "Exílio" e "Moderato Cantabile", da Companhia Regina Miranda e Atores Bailarinos. A companhia Maguy Marin deixa transparecer, claramente, que extrapola do corpo a coisa do humano, de real ou irreal. Não é preciso ter lido Becket para viajar com os bailarinos ao surreal.
F: E sobre a companhia 1º Ato, de Minas Gerais, qual a sua avaliação?
C: Conheço o trabalho deles desde o início. Eles estão mais maduros, as cenas estão mais orgânicas, mais calmas. Mas acho que ainda faltam algumas amarras.
F: Outro grupo que chamou a atenção foi o Espacio, do Uruguai. Eles desenvolvem um tipo diferente de expressão?
C: Quem assiste ao Espacio tem de conhecer um pouco da diretora Graciela Figueroa. Ela estiva essa companhia com uma dificuldade financeira incrível. Mas ela se diverte com a dança, com corpos diferentes. Ela subverte a dança, tenta se soltar de qualquer expectativa. Mas ainda sinto falta de mais primor.
F: A maioria dos grupos apresenta uma pitada de erotismo em suas coreografias. Essa linguagem tem sido uma constante. Não estaria aproximando-se da linguagem televisiva?
C: Não é uma tendência. Mas o marketing pode fazer com que as pessoas apelem para esse tipo de atenção. Pode também ter sido, para alguns grupos, uma saída. A sobrevivência de um grupo, às vezes, depende de um certo grau de apelação. No Festival foi bem dosado, nada gratuíto. Os grupos estão falando de atração e desejo de uma forma natural talvez, não ideal.
F: Finalizando, como você avalia o Fest-Dança?
C: Essa iniciativa é heróica, porque muitos festivais estão fechando por dificuldades financeiras. A proposta de os grupos virem e ficarem é muito boa. Em geral, os grupos apresentam-se e vão embora. A oportunidade de troca foi muito proveitosa entre todos os grupos. Aconteceu realmente uma interação. O fato de ter sido programada a apresentação de um grupo por noite, também foi muito interessante. Existe um tempo de montagem de palco, com luz e sonoplastia independente para cada grupo. O Festival acontecer em dois teatros, um bem perto do outro, foi um fator facilitador, mas faltou expandir para a cidade, envolver mais a população. O palco montado na Praça Santos Andrade poderia ter sido montado em outros locais. É algo para se pensar para os próximos festivais.