Os destinos criam tramas latejantes em tecidos improváveis. Um menino nascido em Bela Vista do Paraíso, que espiava a vida pelas frestas da solidão e do medo viria a se tornar escritor e ocupar um posto importante - o de diretor - na Imprensa Oficial do Estado. Esse menino, que durante 30 e poucos anos permaneceu no peito de Miguel Sanches Neto foi resgatado pelo adulto e posto em paz nas 254 páginas do romance autobiográfico "Chove Sobre Minha Infância". Editado pela Record, estará sendo lançado hoje, às 19 horas, na Livrarias Saraiva Mega Store, no Shopping Crystal Plaza.
O texto fluente e fantástico de uma criança que aos poucos caminha em direção à adolescência vem ganhando espaço na imprensa nacional. Seu autor, porém, separa a obra do criador. "O livro, por si só, está fazendo sua carreira, tendo bastante repercussão. Isso, naturalmente, vai ampliar minha visibilidade fora do Paraná, mas tornar-se autor nacional é uma coisa complexa".
Pelo sim, pelo não, o que está acontecendo é que a repercussão se deve à qualidade do romance. O escritor concorda com isso, e credita o interesse do público e da crítica ao olhar que ele volve à sua terra periférica, mais precisamente de Peabiru, no interior paranaense.
"A gente traz uma experiência que é diferente, hoje, dentro da cultura brasileira. Porque a nossa literatura buscou padrões principalmente americanos, extremamente modernos e, de certa forma, fechou os olhos para aquilo que acontecia e ainda acontece no Brasil", argumenta.
Teimoso, Miguel Sanches Neto confessa que realmente quis tornar essa "experiência periférica" um fato universal "porque são histórias que vão ficando para trás e que os escritores brasileiros vão meio que ignorando, porque elas não têm muito glamour". Para dar mais veracidade a esse amplo mundo dos esquecidos, buscou o olhar da criança, que é o narrador do livro. Através de seus estranhamentos mostra o descompasso dos habitantes desses ermos agrícolas, todos eles afastados da "cultura letrada".
A honra, o amargor, as discretas vitórias, felicidades desbotadas passam como num longo caminho do menino órfão de pai desde os quatro anos. Sua presença é fundamental, na explicação do autor:
- Recuperar essa figura foi extremamente importante para mim porque se o narrador fosse um adulto, teria um olhar um pouco cego para as pequenas grandezas daquela vida. O menino, dentro do livro, não está instrumentalizado, tem um olhar mais aberto, mais terno, mais ingênuo sobre tudo aquilo que está ocorrendo nos anos 60 e 70 no Brasil. Principalmente no que se refere à ditadura. Para ele a ditadura era só o silêncio, era a opressão do padrasto, a falta de perspectivas numa cidadezinha agrícola. É ainda um olhar sobre a formação do artista, como o menino se vê, ele próprio, se formando como artista.
De algum modo a publicação do romance fez com que zerassem as dívidas que a vida tinha com o garoto cheio de vergões na alma. "O menino mudou", reconhece o escritor. Ele cita uma observação do poeta Jair Ferreira dos Santos que depois de ler o livro comparou sua vida à do autor, e concluiu: naquele momento histórico a única coisa que lhes restava era a auto-heroicização.
"Tínhamos que nos transformar em heróis para resistir contra a opressão da ditadura, a ignorância, o preconceito. Então esse menino, depois do livro, saiu heroicizado. Eu fiz dele meu pequeno herói, e relatei a pequena épica infantil que foi a sua vida", diz Sanches, numa mistura de orgulho e carinho.
A fase dos resgates de Miguel Sanches Neto não encerra neste volume. O escritor pretende se envolver com dois novos projetos - um romance sobre os anarquistas da Colônia Cecília, em Palmeira. É um tema que o acompanha há cinco anos. O segundo projeto é trazer das sombras as mulheres de sua família. As raízes estariam fincadas por volta de 1870, em Minas Gerais, e viria a terminar nos anos 30, em Bela Vista do Paraíso.
"Na verdade, acho que a força da minha família vem das mulheres", afirma. Embora analfabetas, oprimidas no preconceito e no machismo, foram vultos fundamentais nos momentos mais drásticos, quando as decisões precisavam ser tomadas a ferro e fogo. O autor quer acompanhar essas personagens anônimas e corajosas, que deixaram os solos mineiros dos antepassados para construir novas histórias nas desconhecidas terras do Paraná. Enfim, a perseguição dos sonhos.
Serviço: "Chove Sobre Minha Infância", de Miguel Sanches Neto. O romance editado pela Record será lançado hoje, às 19 horas, na Saraiva Mega Store, do Crystal Plaza Shopping. Preço do livro: R$ 26,00.