''Acreditem em mim: não existe nada pior do que tentar fazer as pessoas rirem e fracassar.'' Essa frase pode simbolizar um lamento sobre a profissão de Alan Stewart Konigsberg, mas na verdade é apenas mais umas de suas contradições. Vindo de Woody Allen, autor de mais de 30 filmes, é uma contradição com vários significados subentendidos. O autor de ''Noivo Neurótico, Noiva Nervosa'', ''Manhattan'', ''A Última Noite de Boris Grushenko'' e ''Tudo o que Você Sempre Quis Saber Sobre Sexo (Mas Tinha Medo de Perguntar)'' tem agora essas quatro obras lançadas em DVD, sendo que os três primeiros filmes nunca foram lançados em vídeo no País.
É uma ótima oportunidade para conhecer o melhor da obra do grande cômico do cinema americano nos últimos 30 anos. Allen, que dirigiu seu primeiro filme em 1966, ''What's Up Tiger Lily'', aos 31 anos, passou por uma fase inicial praticamente formada por standups - piadas rápidas, fáceis de serem assimiladas, possuidoras de um humor corrosivo. Aos poucos, sua alta erudição, repleta de leituras de Freud, Dostoievsky, Chekov, foi ganhando espaço em seus roteiros, criando um estilo que permite simultaneamente observações sarcásticas do dia-a-dia e críticas ácidas sobre o pensamento contemporâneo. Allen misturou piadas leves, corriqueiras, a um universo infinito, aberto a discussões sobre a morte, a alma, o conceito de Deus, a criação artística, o inconsciente, temas a que mestres como o sueco Ingmar Bergman também recorreram, mas que sob o humor irônico do cineasta nova-iorquino ganharam outra dimensão.
Talvez a essência desse estilo que oscila entre o popular e o erudito esteja em ''Noivo Neurótico, Noiva Nervosa'', (Annie Hall, EUA, 1977), uma saborosa visão sobre a vida a dois. Allen é um cômico que se apaixona pela dublê de atriz Diane Keaton, a Annie Hall do título. À época, os dois eram namorados, e a parceria iniciada cinco anos antes em ''Sonhos de um Sedutor'' prosseguia em bom tom. Hall é uma personagem emblemática na obra de Allen. Tem um carisma, uma inteligência e sensibilidade raras nas personagens femininas do autor, configurando um singelo retrato de Keaton. Envoltos em vários problemas afetivos, o casal enfrenta as dores de um matrimônio conturbado, em que os desejos se contrapõem, a inteligência por vezes exacerbada redime a vontade, e o amor se anula a cada declaração.
Allen fez o seu mais bem acabado auto-retrato, uma radiografia psico-analítica de seus sentimentos e de suas contradições. O humor do autor se direciona principalmente a Freud nesse filme, brincando com algumas descobertas da psicanálise como a disposição perversa polimorfa. Em seus ''Ensaios sobre a Sexualidade'', o autor austríaco defende que ''em condições usuais, uma mulher inculta média pode permanecer sexualmente normal, mas, guiada por um sedutor habilidoso, terá gosto em todas as perversões e as reterá em sua atividade sexual''. Allen brinca com essa insaciável disposição sexual das mulheres e satiriza um estereótipo de intelectuais nova-iorquinos que preferem entender o mundo apenas sob aspectos lógicos. Todas essas peripécias lhe valeram os três principais Oscars - melhor diretor, roteirista e ator, que não foram recebidos pessoalmente pois Allen tradicionalmente toca clarinete todas as segundas no Michael's Pub, uma casa de jazz na zona leste de Manhattan. E como a cerimônia do Oscar se realizava às segundas...
Se em ''Annie Hall'' o cineasta atingiu seu ápice, dois anos depois mais uma obra primorosa chegaria às telas, ''Manhattan'' (EUA, 1979, 96 minutos). Praticamente o mesmo time de ''Noivo Neurótico, Noiva Nervosa'' foi mantido - Gordon Willis na fotografia, Charles H. Joffe na produção e Juliet Taylor na escolha do elenco. O roteiro, novamente uma parceria de Allen com Marshall Brickman, traz as aventuras amorosas de um intelectual novaiorquino (Allen) que se apaixona pela namorada (Diane Keaton) de seu melhor amigo (Michael Murphy). Embalado sob ''Raphsody in Blue'', de George Gershwin, o cineasta realiza o seu retrato mais refinado da cidade em que mora, um poema visual em preto-e-branco que evidencia as neuroses e conflitos da sociedade contemporânea.
O estilo do autor agora também impõe alguns conflitos dramáticos mais maduros, como a perda do amor, a insegurança cada vez mais intensa à medida que a morte se aproxima, a incapacidade humana de conhecer o mundo em sua totalidade. O cineasta está agora muito próximo dos temas dos principais criadores do século 20 - a agonia de Franz Kafka, a metafísica de Fernando Pessoa e os embates sobre o tempo de Jorge Luis Borges. Allen se torna um autor completo, sóbrio no humor e leve na reflexão, um bom equilíbrio cinematográfico.
Esse estilo mais racional começou a se moldar em ''A Última Noite de Boris Grushenko'' (Love and Death, EUA, 1975), uma sátira tresloucada de ''Guerra e Paz'', a obra de Leon Tolstoi. Allen interpreta um soldado covarde que é obrigado a enfrentar Napoleão e seu exército francês. O seu amor pela personagem de Diane Keaton é o único motivo que ainda lhe permite um desejo de voltar à Rússia. Keaton faz uma mulher frágil, volúvel, totalmente disposta a se distrair com o primeiro homem que aparecer. Embates saborosos entre Allen e Keaton deram um atrativo a mais para a trama, iniciando a passagem do cineasta para uma fase mais madura.
Entretanto, a fase inicial do autor nova-iorquino tem seus méritos. ''Everything You Always Wanted to Know About Sex (but Were Afraid to Ask)'' (Tudo o que Você Queria Saber Sobre Sexo - Mas Tinha Medo de Perguntar - EUA, 1972) é o único filme do pacote que já havia sido lançado em vídeo no País. Trata-se de uma coletânea bem informal de contos ''afetivos'', diretamente ligados a relações sexuais. Allen interpreta desde um bobo da corte que deseja a rainha, até um espermatozóide ansioso para ser ejaculado. Há um capítulo formidável em que Gene Wilder se apaixona perdidamente por uma ovelha. Enfim, um humor despretensioso e fragmentado, bem de início de carreira.
O pacote de quatro DVDs de Allen pode ser apreciado pelos cinéfilos de três maneiras: os filmes serão vendidos em conjunto, separadamente, e também estarão disponíveis no acervo das lojas para locação. Se Allen ainda está em dúvida sobre alguns temas metafísicos, uma coisa é certa - seu humor é caso único no cinema contemporâneo, flertando sobre todos os temas com todos os públicos.