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Memórias bem temperadas

12 abr 2001 às 09:35

Histórias é que não faltam para a curitibana Margarita Wasserman, que se descobriu escritora na maturidade da vida. Uma nova leva dos causos ouvidos, presenciados e vividos na própria pele estão em seu livro mais recente, "Q`dêle Curitiba?", à venda nas livrarias da capital. A edição financiada pela autora acaba de sair do forno com tiragem de mil exemplares. "Já vendi uma porção", diz Margarita orgulhosa. O volume soa como um presente que ela própria se deu às vésperas dos 74 anos a serem comemorados dia 2 de maio.

Este é o quinto título de sua lavra que chega ao público e, ao contrário do anterior, não terá sessão de lançamento. A escritora desculpa-se dizendo que já fez muito distribuindo o lote nos vários endereços de Curitiba. Não tem disposição nem coragem para enfrentar os compromissos de autografá-los.


No máximo poderá marcar um encontro com os leitores e possíveis leitores, desde que haja permissão dos gerentes das livrarias. Como gosta de uma prosa, Margarita imagina que seria interessante essa experiência. "Minha intenção é fazer uma hora de bate-papo informal. Se quiserem comprar o livro, tudo bem. Se não, pelo menos ficam conversando comigo, me conhecendo".


"Q`dêle Curitiba?", com sua pergunta muda sobre uma cidade que desapareceu, é um elo a mais na corrente das lembranças. "Tem tanta coisa ainda para se falar dos acontecimentos, das minhas emoções... Muitas vezes escrevo como se fosse um conto, mas normalmente são coisas que fiquei sabendo", explica. Os episódios são reais, mas para evitar iras e cóleras, muda os nomes, mistura uma história na outra, despintando fatos. "Não quero que venham me cobrar", confessa.


As cenas que afloram em sua memória despertam de um passado longínquo e bailam estranhas num mundo adverso. As figuras e crenças são prisioneiras de seu tempo, como o polaco que só comprava bilhete da "brabuleta" da Loteria Federal. Os cobradores que iam atrás dos devedores usavam uniforme vermelho. Eram temidos por causa da roupa vistosa - esta servia de publicidade à vizinhança sobre os maus pagadores. "Dava dó, tinha gente que não pagava por falta de condições", lamenta Margarita.


"Quando era menina ouvia falar que roupa de menino não podia apanhar reflexo da lua, senão o nenê tinha cólica", continua a escritora. "Quando a lenha no fogão soltava faíscas, dizia-se "dinheiro que venha!". São folclores que não existem mais, também não tem mais fogão a lenha. Acho interessante registrar essas coisas; não tenho veleidades de escrever um tratado filosófico. Gosto de falar de coisas leves, de algumas um pouco mais pesadas, tudo que ouvi e nunca mais esqueci".


Margarita Wasserman, amiga de Dalton Trevisan desde os tempos de menina - ele é um de seus leitores e incentivadores de primeira hora - suspira por uma cidade onde se podia dormir de porta aberta, quando as crianças perambulavam sem perigo pelas ruas e a informalidade entre as pessoas era maior. "A gente batia na porta e vinham nos receber com gosto. Era doce receber aquele abraço de boas-vindas", conta. Apesar de se sentir rodeada de carinho, ainda assim sente falta "daquela vidinha pacata de 60 anos atrás".


Outro dia, pela janelinha do ônibus, viu um cartaz num pequeno restaurante da rua Marechal Deodoro, no centro da cidade. Anunciava por R$ 3,00 "bife a cavalo acompanhado de feijão, arroz, salada de tomate e alface". Margarita virou-se para uma moça ao lado e comentou que há tempos não ouvia alguém falar em bife a cavalo. A resposta da jovem desconcertou-a: ela não sabia que prato era aquele.


"Como dizia um médico, esse era o melhor alimento do mundo. Tinha proteínas, sais minerais, tudo que precisasse estava ali: bife, ovo, feijão com arroz... Hoje está difícil para o pobre comer isto. Virou comida de rico", lamenta. Assim como a juventude desconhece os nomes que já foram tão populares, se entope de lanches com nomes americanizados como os cheeses: x-egg, x-burguer. "Daí que aparece tanta gente obesa", critica a veneranda senhora.


Sem dar tempo ao tempo a memorialista está empenhada em novo trabalho, que tem título provisório de "Aqui Jaz Curitiba". Ela diverte-se com o nome, especialmente com uma fotografia que deverá conter em suas páginas - de uma vaca caminhando tranquila pela cidade.


Esse mundo que deixou de existir deu lugar a outro: solitário e solidário. "As pessoas estão procurando se ajudar mutuamente, isso é interessante. Hoje existe um medo comum, todo mundo está com medo, mas as pessoas estão mais solidárias. Elas estão mais afastadas umas das outras, mas se acontece alguma coisa se unem, fazem campanhas. A solidão existe, mas a solidariedade também", atesta.


Com tanta modernidade pipocando a cada dia, a escritora tomou o bonde com ajuda da neta que criou um site para ela: http://orbita.starmedia.com/~mwasserman. Está radiante. Só não entende porque com esse avanço todo os cientistas ainda não inventaram vacina para combater "os pensamentos ruins, as maldades, o mau caratismo".


Se fosse descoberto um antídoto desses, o primeiro lugar onde teria de ser aplicado seria Brasília. "Tinha que injetar as vacinas nos políticos. Quem sabe viessem a se compadecer do povo que está passando fome. Nunca vi tanta miséria". Cismosa, avalia o grau de violência, o custo de vida, o caráter dos governantes. Não tem outro jeito a não ser perguntar: "Será que alguém vai escrever algum dia que tem saudade dos dias de hoje?"

Seviço: "Q`dêle Curitiba?", de Margarita Wasserman. À venda nas livrarias Saraiva Megastore, Alexandria, do Chaim, Curitiba, Eleotério e Girassol. Custa R$ 15,00.


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