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José Saramago em Curitiba

06 dez 2000 às 09:13

O primeiro escritor de língua portuguesa a receber o Prêmio Nobel de Literatura, José Saramago, 78 anos, estará pela primeira vez em Curitiba nesta sexta-feira. A cidade foi incluída na maratona de lançamento do livro "A Caverna", sua primeira publicação após a conquista do prêmio. Vindo da África do Sul, o escritor visita as cidades brasileiras de Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. Em todas elas faz palestras e concede autógrafos. Na próxima semana, seguirá para Buenos Aires, Montevidéo e Lima.

"Retorno para casa no dia 20 de dezembro e, se não anteciparem o Natal, ainda chego para a festa", brinca. A casa a que se refere é a sua residência na pequena ilha de Lanzarote, no arquipélago das Canárias, onde mora há alguns anos.


"Meus compatriotas acham estranho eu viver lá e cobram o meu regresso a Lisboa", conta o escritor. "Eu respondo que vou a Portugal a cada dois meses e, o mais importante, pago os meus impostos lá. Que querem mais?", diz bem humorado.


Durante a entrevista que concedeu na tarde de segunda-feira na sede da Companhia das Letras, em São Paulo, Saramago falou ainda que o lançamento de "A Caverna" tem sido para ele sinônimo de "muito cansaço, muito hotel, muito aeroporto, muitos autógrafos, muita palavra, muita fadiga e muita dor de cotovelo (risos), a mesma de que o Guga deve sofrer".


Ele esclarece que esta dor, resultado da inflamação num dos ossos do cotovelo, é comum para quem joga tênis, esporte que o escritor praticou durante muito tempo. Em seu caso, o problema é hoje agravado pelas longas sessões de autógrafos (chamadas em seu sotaque lusitano de "assinaturas"). Acompanhe a seguir outros trechos da entrevista em que fala sobre escritores brasileiros, sobre a humanidade e, é claro, sobre o livro "A Caverna", que é uma alusão direta à imagem da caverna do filósofo grego Platão.


- Como o senhor contextualiza o mito da caverna de Platão?


- O mito tem 2.300 anos mas parece que no mundo nada é suficientemente velho para ser esquecido. Há razão para que certas coisas permaneçam no imaginário coletivo. A caverna de Platão tem uma atualidade visível e pode ser facilmente relacionada com os nossos fatos. A idéia do livro surgiu em 1997, quando, entrando em Lisboa eu vi um cartaz de publicidade em que se anunciava a abertura de um grande shopping center. Neste momento eu tive uma espécie de iluminação e com o tempo se tornou bastante claro para mim que eu poderia entender aquilo como a caverna de Platão. Fisicamente são muito parecidos: tanto a caverna como o shopping center não têm janelas. Ambos são locais em que pode-se estar em segurança. E o shopping é hoje muito mais do que um local onde se vai apenas para comprar: é o único lugar público, já que as pessoas deixaram de se reunir nas praças, nas ruas. Se repararmos bem, a nossa vida está cada vez mais numa caverna, nossas casas estão se transformando em cavernas, com grades, arame farpado e vigilância. Nós viemos das cavernas, que eram locais de refúgio do frio, da chuva e das feras, e estamos voltando para elas.


- E a família de oleiros foi escolhida no livro para se contrapôr à massificação do shopping?


- Eu poderia ter usado como protagonista um sapateiro ou um latoeiro, mas a olaria tem toda a mítica do barro como matéria da criação. Em "A Caverna" o shopping center é o símbolo da vida moderna e a olaria é o símbolo de um mundo que está em vias de extinção. Estamos numa era de desaparecimentos, para dar lugar a uma uniformidade em que tudo é igual a tudo. É como na Inglaterra quando criaram o tear mecânico e os tecelões manuais ficaram sem trabalho: muitos se suicidaram. Quando há grandes transformações tecnológicas, que são inevitáveis, não devíamos deixar ficar para trás ruínas pessoais, destroços de vidas. Então a olaria e o shopping são dois pólos que se enfrentam, mas a olaria perde uma batalha que nem começa a disputar porque o poder está todo do outro lado.


- Como foi a construção do personagem Achado, "um cachorro quase humano"?


- De vez em quando aparece um cão em meus livros. Inclusive, eu gostaria de ser recordado no futuro como o criador do cão das lágrimas, do livro "Ensaio Sobre a Cegueira". Podem esquecer todos os meus outros personagens humanos, mas se no futuro alguém falar que "existiu lá em Portugal um determinado autor que escreveu algumas coisas que ninguém nem lembra mais, mas que criou aquele cão", eu já me darei por satisfeito... O "Achado" tem algo em comum com os três cães que tenho em minha casa, já que eles também apareceram na porta e nós os recolhemos. Em particular, ele é o retrato perfeito de um dos meus cães, o mais novo, chamado Camões. Ele tem este nome porque apareceu lá em casa no dia em que eu soube que eu tinha ganho o Prêmio Camões, em Lisboa. Como o Achado, ele também é quase preto, com uma mancha branca que parece uma gravata. Quando eu inclui o Achado na história, não esperava que ele ganhasse a dimensão que conquistou. Acho que de certo modo, ele é um aglutinador dos sentimentos de toda aquela gente. Acredito ainda que se o Achado fosse retirado da "A Caverna", o livro todo perderia com isso, assim como se o cão das lágrimas saísse de "O Ensaio Sobre a Cegueira", não seria a mesma coisa, portanto não é gratuita a entrada de um cão nestas histórias.


- Em relação a humanidade, o senhor é hoje otimista ou pessimista?


- Acho que devemos acabar para sempre com esta história de pessimismo ou otimismo, pois isso só serve para dividir as pessoas em duas categorias distintas. Acho que deveríamos considerar quais são os fatos e como é que reagimos a estes fatos que são iguais para todos. Pode ser uma questão de sensibilidade ou pode ser uma questão de como é o mundo para aquela pessoa. Se para alguém o mundo for simplesmente um lugar onde se quer enriquecer e viver bem, sem me importar com o resto da humanidade, ela encontrou uma forma de viver no melhor dos mundos para ela, fazendo de conta que o resto não existe. Agora, se para outras pessoas o resto existe, o mundo é um desastre e elas se preocupam com isso, não vale a pena chamá-las de pessimistas.


- Em entrevista recente, o senhor falou que estaríamos vivendo o fim da civilização Ocidental. De que forma seria isso?


- Quando eu digo que chegamos ao fim de uma civilização, é porque de forma geral ainda somos filhos do século 18, filhos das enciclopédias, do Iluminismo, de uma certa idéia de que em nome da razão humana pode-se fazer de tudo, desde o mais extraordinário até o mais horroroso. Isto é estático, mas os valores se transformam a cada dia. A civilização onde as pessoas faziam grande contato umas com as outras está se acabando. Hoje, elas podem até se falar todos os dias através da Internet, mas em minha opinião esta é uma falsa comunicação. Acredito numa comunicação em que pode-se ver o outro, ver as gotas de suor, esticar a mão e cumprimentar. Por outro lado, o desenvolvimento tecnológico atingiu uma dimensão tal que conduz a coisas absurdas, por exemplo, podemos ver como são as rochas em Marte, mas não podemos ver nossos próprios problemas na Terra. Chega-se a conclusão que é mais fácil chegar a Marte do que ao nosso próprio semelhante. Esta é a questão: como vai se formar uma nova geração de seres humanos com estes valores, com este sistema de relação? Eu posso estar enganado, mas acho que este planeta em 2100 terá muito pouco em comum com os valores que hoje são os nossos. É nesse sentido que eu falo em final de civilização, não é nada catastrófico. A não ser que você considere catastrófico um sistema que privilegia cada vez mais a existência de excluídos.


- Em sua opinião, há alguma escritor brasileiro que pelo conjunto de sua obra já tivesse merecido ganhar o Nobel de Literatura?


- Em primeiro lugar, e apenas porque ainda está vivo, o Jorge Amado. E agora, não em segundo lugar ou em terceiro lugar, mas deveriam ter recebido o prêmio enquanto estavam aqui, o Carlos Drummond de Andrade e o João Cabral de Melo Neto. Mas não me sinto digno a ficar dizendo quem deveria ou não ter ganho tal prêmio, apenas digo que escritores com a dimensão destes três creio que não há.


- O senhor declarou certa vez que havia uma distância muito grande entre os escritores portugueses e brasileiros. Ainda pensa desta forma?


- A situação não mudou muito. Está havendo um certo processo - que deverá ser amplo para que seja plenamente satisfatório -, de finalmente se publicarem obras de escritores brasileiros em Portugal. Deve haver uma presença de informação literária e artística cada vez mais constante nos meios de comunicação entre os dois países. Acho que assim, pouco a pouco, a situação irá mudar. Agora haverá um acontecimento importante que creio que vai contribuir muito para nos aproximar: o centenário de morte de Eça de Queiróz, porque o Eça foi um ídolo aqui tanto quanto em Portugal.


A jornalista viajou a São Paulo a convite das Livrarias Curitiba.

Serviço: José Saramago estará no Centro de Convenções de Curitiba no dia 8 de dezembro, das 18h30 às 21h30. Haverá uma mini-palestra, sessão de autógrafos e leitura de trechos de "A Caverna" pelo ator Luís Mello. Os convites podem ser retirados em qualquer loja da Livrarias Curitiba.


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