Numa época em que a televisão está tão entranhada na nossa cultura, são positivas as discussões acerca de seus limites, eventuais censuras e sobrevivência. O diretor da TV Cultura/São Paulo Jorge Cunha Lima faz uma profunda reflexão sobre a televisão brasileira.
Convidado pela Revista Imprensa a abordar o tema "Financiamento de produção nacional com o objetivo de aumentar o mercado de trabalho", no 1º Fórum de Cultura Brasileira e Televisão, que ocorreu nos dias 13 e 14, em São Paulo, Cunha Lima desenvolveu um raciocínio lógico, analítico e de argumentos sobre a televisão e o cinema.
Segundo ele, não é possível falar de financiamento porque, no Brasil, não existe financiamento para cinema, televisão pública e nem para arte. "Não existe financimento de forma alguma, nem da parte pública que só faz isso através de incentivos fiscais, nem da parte privada porque banco, no Brasil, só tem um cliente que é o Estado e todo o dinheiro dos bancos privados é para financiar a dívida pública. Por causa dos juros altíssimos não sobra e não há possibilidade de se financiar nada. Só um cineasta completamente ensandecido, louco, pediria a um banco privado no Brasil R$ 100 mil para fazer um filme. Ante do filme ficar pronto ele teria uma dívida de R$ 500 mil."
Perguntado sobre como o País sobrevive nas artes, no cinema e na televisão, o diretor da TV Cultura, diz que o cinema no Brasil é menos importante do que a televisão. "Nos EUA o cinema foi o orgulho americano. Toda a utopia de capitalismo foi sustentada nos primeiros anos de vida, no começo do século, pelo cinema. Todos os filmes eram exaltações desse mundo que o capitalismo havia criado. Também toda a utopia socialista tinha um lastro muito grande no cinema", observa.
Nos EUA, Hollywood continua a ser a base política da formação e do sentimento dos homens. Na análise do diretor, no Brasil, o cinema é uma atividade heróica de alguns produtores independentes e tem, como a música brasileira, um papel relevante na consolidação da identidade brasileira. "É impressionante como o cinema brasileiro dá posse ao Brasil real. De vez em quando ele é feito de altos rolos de imaginação cultural." O interessante, argumenta, é que mesmo feito pelos quadros mais elevados da burguesia, como em "Central do Brasil" e "Eu, Tu, Eles", são incríveis representações da identidade e da pobreza.
O cinema parece ter um compromisso muito profundo com a identidade brasileira. Esse cinema brasileiro só é financiado pela Lei de Incentivo Fiscal. Isso não quer dizer que a situação seja uma tragédia, nem quer dizer que a gente tenha que deixar o cinema viver nessa impossibilidade.
O que aconteceu, explica, foi que em 1982 o cinema chegou a ter, com todas as dificuldades de financiamento, 35% de presença nas salas de exibição do País. Esse é um índice muito relevante, porque também é uma atitude do estado e da política, de produtores a favor do cinema. Quando veio a tempestade com o Collor, baixamos para zero, ou 0,5%, naqueles dois anos, de filmes brasileiros nas salas de cinema.
Mas será que agora há uma atitude a favor do cinema, questiona. Em 1999 recuperamos e registramos a presença 5 milhões e 500 mil espectadores brasileiros, o que é uma coisa bastante interessante e mostra que não devemos ficar apenas numerando tipos de financiamentos, mas tentar verificar que algumas coisas acontecem no País a partir de atitudes políticas.
Jorge Cunha Lima afirma que a cidadania, o gosto, a sexualidade, os desejos dos homens acabam inteiramente sendo definidos, no Brasil, pela televisão. A televisão é a fonte de todos os desejos, dos quais o desejo de consumo é o mais fundamental. Então, que nação vamos construir inteiramente baseados nos padrões da televisão que temos? Como sair desse impasse e superar isso?
"Vamos às causas mais profundas. Primeiro, a televisão no Brasil nasceu comercial. A televisão basea-se nos números do Ibope que dizem: "qualidade é o que a audiência diz que é qualidade". Vocês percebem a perversão? Isso, além de ser uma burrice, é um desrespeito ao homem comum. Mas isso tem um efeito deletério muito grande, que é o seguinte: a arte é um hábito do intelectual. Se alguém vai ao teatro uma vez e gosta, vai outras vezes, e acaba gostando, fica viciado. Com o cinema e a música é a mesma coisa. O lixo também é um hábito. Se as pessoas ficam todo o dia ali, acabam se acostumando. De repente, você liga a televisão e não aceita não ver mais a amante da mãe do fulano, filmando a tortura de uma criança de três anos. Isso se torna indispensável para a libido mental".
Cunha Lima argumenta que a televisão comercial não precisa de financiamento de banco apesar de estar muito endividada, pela seguinte razão: elas participam de um bolo de R$ 4 bilhões, que é o bolo publicitário para a televisão, no País. "A guerra que a gente vê aos domingos, tem razão de ser. Porque a boca está aberta para quem pode abocanhar mais. É uma luta por muito dinheiro", reconhece.
Das verbas públicas para televisão de R$ 600 milhões, 99,9% vão para as televisões comerciais. A conclusão é que a televisão comercial no Brasil está equiparada nessa luta de mercado e produz segundo as exigências do mercado e não segundo as exigências da sociedade como determina a Constituição no artigo 221, que diz que todas as televisões são concessões públicas e deveriam ter da mesma forma um compromisso com a educação, com a formação da sociedade. Então, afirma Cunha Lima, a nossa Constituição está sendo deturpada.
Tanto o cinema tanto a televisão vivem atualmente um momento de transição tecnológica que tanto pode levar a um renascimento ou para o buraco. Depois de mudanças no paradigma tecnológico o mundo nunca mais será igual ao que era. Como no Renascimento estamos vivendo uma hipótese de mundança. Temos de observar essa transformação do mundo, antes de ver o que vamos fazer com a televisão ou com o cinema. "Acho que precisamos perceber os riscos que a gente vai correr. Um deles é a substituição da mão pelo dedo. A mão é harmônica, solidária, ela tinge, pinta, faz, escreve. A mão deriva de uma ação conjunta. E dedo é autoritário, indicativo, digital. Então temos de ter cuidado com o mundo que vai ser inteiramente baseado nessa digitalidade, não no senso comum. Nós estamos vivendo numa sociedade que está priorizando um segundo elemento, que é o número. Tudo é julgado por números. Estamos sendo dirigidos pelo dedo e pelo número."
Esses números vão nos comprometer de uma certa forma, mas temos de nos vacinar contra a impiedade dessas coisas que se espalham pelo mundo através da mídia e acabam virando tótens, alerta. Como a globalização, esse sistema econômico provocou a epidemia do desemprego. "Um sistema econômico concebido para promover o desemprego da humanidade. Cada um de nós tem de manter uma atitude crítica em relação a tudo, porque na hora da virada a gente vai ter de saber por onde vai ser a saída. Efetivamente, nós temos grandes saídas ou pequenas saídas. Cada um arrumando do seu jeito. Mas uma coisa é certa: não dá mais para fazer cinema ou televisão, se não tiver qualificado para o desafio tecnológico."
Mas o desafio tecnológico não é só a substituição de máquinas analógicas por máquinas digitais. É a substituição de uma sintaxe que a gente conhecia, criativa, por uma outra linguagem que tem protagonistas e pedagogia novas. "Numa televisão, tudo vai ser tão diferente, daqui a pouco que uma porcentagem muito grande dos nossos quadros ou vão para a rua ou vão ser reciclados. Se a sociedade não tiver a compostura de reciclar ela vai botar em desespero uma quantidade enorme de gente", afirma.
Isso tudo para dizer que financiamento no Brasil não deve ser para a produção, mas para a reciclagem das pessoas. "Sabem quanto custa isso", provoca. "Muito dinheiro. Estou mais preocupado com as pessoas. Televisão se faz com gente. Então temos de preparar os quadros humanos. Temos de, efetivamente, conscientizar a sociedade da importância da televisão no Brasil. A televisão comercial tem de assumir a sua responsabilidade constitucionais e a televisão pública tem de ser ajudada pela sociedade. Temos de consolidar a TV Educativa", apela.
Porque a televisão comercial brasileira não possibilita a construção do cinema, como acontece na Europa? Ele responde argumentando que isso vem de uma subordinação excessiva da nossa sociedade aos parâmetros do mercado. "O mercado pode ser um índice poderoso, mas o conteúdo é rei. O mercado é uma linha auxiliar da compreensão da sociedade mas não é o vetor que define o comportamento das empresas, dos governos ou dos homens. O mais importante do que cobrar verbas ou financiamentos é ter uma postura muito profunda diante dos equívocos dessa sociedade de mercado que nós vivemos. Ou construímos uma sociedade pautada em valores ou estamos liquidados."
Finalizando, Cunha Lima observa que o orçamento da cultura, "esse instrumento fantástico", é de 0,5% do total. Nunca ultrapassou isso. "Cultura não interessa ao governo. Estamos numa sociedade que só valoriza as coisas: viadutos, asfaltos, prédios. As coisas são apenas uma complementação da dignidade do homem. A sociedade não valoriza o espírito humano, a criatividade. Isso não é moralismo, não. É sobrevivência. Sugiro que sempre perguntem para qualquer coisa: esse negócio interessa aos homens ou às coisas?