"O acaso existe e tem sempre a ultima palavra", ecoou a voz grave de Fernanda Montenegro, na noite deste domingo, pelo gramado do parque Ibirapuera, em São Paulo, onde a atriz apresentou a leitura de "A Cerimônia do Adeus", da filósofa Simone de Beauvoir para milhares de pessoas.
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Mais de uma hora antes do início da peça, no portão 2 do parque, entrada que dá acesso ao auditório Oscar Niemeyer, uma fila de pessoas, a maioria jovens, aguardava para entrar na área reservada do gramado, em uma ação de marketing do banco Itaú, que estimou receber 15 mil pessoas para assistirem do lado de fora à projeção da leitura.
Centenas de pessoas já ocupavam o gramado com cangas e toalhas, enquanto ambulantes perambulavam entre elas vendendo pipoca, cachorro-quente, açaí e água.
Parece justo que a performance histórica da atriz, que viveu muitas vidas entre o teatro e o cinema, transformasse a parede traseira do icônico auditório em uma enorme tela, enquanto sua encenação se passava sobre um palco, no interior do auditório. Ao lado da projeção, outra forma arquitetônica marcante da cidade, o obelisco iluminado, parecia reverenciar a carioca que se tornou atriz em São Paulo.
Os três alarmes tradicionais do teatro reverberaram pelo gramado com meia hora de atraso, recebidos por gritos ansiosos da plateia. Fernanda Torres, filha de Montenegro, subiu ao palco ovacionada de pé pela multidão para contar a relação da mãe com a obra de Beauvoir.
"Essa obra fala, acima de tudo, da liberdade e de sua importância em nossas vidas, não importa a idade ou a origem de cada um", disse ela. "Apesar das vidas diferentes, a liberdade também guiou o caráter de minha mãe."
Em seguida, contou como a mãe foi impactada por "O Segundo Sexo", quando tinha 20 anos. "Quando eu completei 17 anos, ela fez questão de me dar uma edição de presente", lembrou.
Foi perto dos 80 anos, porém, que Montenegro se reaproximou de Beauvoir, após a morte do marido, Fernando Torres, e de muitos companheiros de sua geração. Foi ali que ela deu vida a "Cerimônia de Adeus" pela encenação, incluindo ao texto original trechos de outros livros da filósofa francesa sobre envelhecimento, amor e liberdade que, de alguma forma, marcaram sua vida.
A atriz iniciou a leitura sob gritos da plateia. Na hora seguinte, a multidão de idades variadas ouviu, hipnotizada, aos acontecimentos biográficos escritos por Beauvoir, como seu encontro com Jean-Paul Sartre, a vida boemia e intelectual na Paris do século passado, sua primeira amizade e a descoberta de que não se é mulher, mas torna-se uma.
Montenegro foi ovacionada de pé ao término da apresentação, por uma multidão que pode vê-la em carne e osso graças à abertura das cortinas que formavam a parte traseira do palco, sob a projeção.
"Quero agradecer que o acaso existe e por isso estou aqui com a minha filha, diante dessa multidão, pelo teatro", disse, emocionada. "O teatro é uma arte arcaica, primitiva, um ser humano diante de outro trazendo a presença de uma terceira dimensão. Isso está acontecendo em uma era eletrônica."
Entre reflexões sobre paixão, casamento, feminismo, amor, erotismo, encontros e desencontros, ética e bons costumes, ativismo e colonização, velhice e morte, Montenegro ecoou a voz de Beauvoir, e a sua própria, sobre como o sentido da vida não existe, cria-se, mas ainda assim é o acaso que dá a ultima palavra.