LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) - Muito antes da febre dos super-heróis, um outro personagem de capas fantasiosas e super poderes de vidente fazia a cabeça de nossos vizinhos hermanos pela América Latina.
Walter Mercado, mais conhecido no Brasil pelo bordão "ligue djá" e por práticas duvidosas de telemarketing, é uma lenda da televisão latina e, mais recentemente, foi alçado à cultura digital dos memes.
Antes de morrer no final de 2019, aos 87 anos, o astrólogo andava sumido do mapa por quase uma década. Vivia recluso em San Juan (Porto Rico), longe do glamour e das roupas extravagantes que marcaram sua carreira, até ser encontrado por uma dupla de diretores americanos de ascendência latina.
Leia mais:
Gabriel Leone explica por que precisou 'se apagar' para viver Ayrton Senna em série da Netflix
Lady Gaga estará no elenco de 'Wandinha' na segunda temporada da série
Transfobia de J.K. Rowling não afeta série de Harry Potter, diz CEO da HBO
Pré-estreia da série “Libertárias” será exibida gratuitamente nesta quarta em Londrina
Ao recebê-los em casa, Mercado caprichou no spray de cabelo, vestiu suas roupas mais brancas e tirou a poeira de seus óculos dourados.
"Para nós, ele era uma mistura de Oprah Winfrey e Mister Rogers, com o look do Liberace", disse à reportagem a diretora Cristina Costantini ("Science Fair"), que codirigiu o documentário "Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado" ("Mucho Mucho Amor", no original), estreia da Netflix em 8 de julho, após passagem pelo Festival Sundance.
O nome original do filme pega emprestado o bordão que Mercado usava para se despedir em seus programas de astrologia, aos quais a diretora assistia religiosamente todos os dias quando criança, ao lado de sua avó imigrante. "Temos esse amor profundo por ele porque crescemos ao seu lado. Ele representa uma nostalgia da nossa infância", explica.
Para quem conhece apenas seus comerciais bizarros na TV brasileira, marcados pelo inesquecível "ligue djá", é curioso embarcar em sua jornada mística. Somos apresentados à sua personalidade delicada e um tanto ingênua, embora ele fosse também ambicioso.
No auge da fama, atingia diariamente 120 milhões de televisores por diversos países: ele surgia como um mensageiro sideral andrógino, versado em misticismos, astrologia e muita auto-ajuda.
"Ele pregava o amor, a esperança e a paz. É uma mensagem muito relevante para os dias de hoje. Ele era uma fonte de inspiração para muitos de nossos avôs. Todo dia ele repetia: 'Você pode, sim. Amanhã será um dia melhor do que ontem'", lembra Costantini.
Costantini filmou Mercado por dois anos ao lado do codiretor Kareem Tabsch ("The Last Resort"), que é também cofundador de um cinema independente em Miami.
Ao conhecê-los pessoalmente, a primeira pergunta do vidente foi saber o signo dos dois (ambos são libras, o que aparentemente ajudou). Mercado também fez o mapa astral da dupla. "Não somos grandes crentes em astrologia, mas ele acertou bem", disse.
Foi Tabsch quem fez o primeiro contato com a família de Mercado, ao saber de um leilão em Miami para vender o apartamento e alguns pertences do astrólogo, em 2017. O diretor chegou a comprar um crucifixo, mas não conseguiu nenhuma das capas bordadas, que custavam alguns milhares de dólares.
Os dois diretores conheciam por cima a fase do "ligue djá", quando Mercado lançou um serviço telefônico de atendimento pago no Brasil, no começo dos anos 1990. Chegou a ter meio milhão de assinantes e 4.000 atendentes. No documentário, Mercado se defende dizendo que não era golpe e que seus atendentes eram videntes e tinham sempre uma palavra de motivação.
"Ele só tinha coisas lindas para falar do Brasil. Não sei se ele sabia que as pessoas no Brasil achavam que ele podia ser um vigarista", contou Tabsch, rindo. "Nosso filme é um retrato amoroso, mas também queríamos mostrar suas complexidades. Ele foi levado a certos caminhos por pessoas gananciosas, mas, honestamente, ele também queria fazer dinheiro."
O sumiço da vida pública veio depois que Mercado assinou um contrato sem os devidos cuidados e perdeu os direitos de sua marca e de seu próprio nome para seu empresário de longa data, Bill Bakula. Os dois passaram seis anos brigando na justiça, o que acelerou a debilitação da saúde do astrólogo.
Ainda que sem nenhuma presença online, Mercado foi catapultado à fama digital para as gerações de latinos mais jovens ao aparecer num post do ator Lin-Manuel Miranda, americano de origem porto-riquenha famoso por escrever o musical "Hamilton". O documentário mostra o encontro dos dois, como parte da renascença cultural do ícone latino.
A vida mística de Mercado começou cedo. "Ligue Djá: O Lendário Walter Mercado" resgata sua infância pobre nos campos de cana-de-açúcar de Porto Rico, quando o menino sonhador vira "Walter dos Milagres". Uma vizinha testemunha o garoto dar vida nova a um passarinho sem vida com um singelo sopro, e pessoas do bairro passam a fazer fila em sua casa para tocá-lo.
Na capital San Juan, ele estuda dança e atuação, dando início a sua carreira nas telenovelas. Em 1969, uma aparição num programa de TV muda seu destino para sempre: ele aparece fantasiado e maquiado para promover uma peça de teatro, mas engata um monólogo de 15 minutos sobre signos.
Mercado hipnotiza a nação e congestiona as linhas telefônicas da emissora. Rapidamente, ganha um programa de TV, o primeiro do mundo totalmente dedicado à astrologia.
Os diretores não fogem da questão que paira no ar o tempo todo. Afinal, ele era gay? Numa entrevista a Marília Gabriela de 1998, a jornalista comenta que ele tem "uma aparência muito feminina". "Quando criança, quando atendia o telefone, me chamavam de senhora ou senhorita. Nunca me preocupei", ele responde blasé.
Na dúvida, ao longo do filme, a pergunta volta: "Você é hetero?" Para evitar spoilers desnecessários, digamos apenas que a resposta é adequadamente um tanto mística.