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Livro conta as peripécias do trompetista Chet Baker

05 jan 2002 às 14:43

Quem for a uma banca de jornal, vai ver Chet Baker (1929-1988) estampando a capa da revista Bravo desse mês. O motivo é este aqui: ‘Memórias Perdidas’, livro autobiográfico de pouco mais de 130 páginas que acaba de receber tradução no Brasil da editora Jorge Zahar.

O volume foi publicado originalmente em 1997. É uma reunião de anotações do trompetista norte-americano sobre episódios vividos durante as décadas de 40, 50 e começo dos 60 cobrindo o período que vai da fase em que serviu o exército em Forte Lewis, Washington (EUA) ao exílio europeu.


Ao longo das reminiscências, a figura de Chet salta do papel como um junky incurável movido pela busca insaciável da ‘próxima dose’. Obviamente não foi esta a imagem acolhida por sua legião de admiradores nos palcos e nos toca-discos quando ele despontou com o som aveludado de seu trompete e em interpretações vocais contidas que influenciariam inclusive os criadores da Bossa Nova, a ponto de muitos lhe atribuírem a paternidade sobre o canto intimista de João Gilberto.


Lenda do cool jazz, Chet Baker aparece aqui recapitulando peripécias nada prosaicas, com direito a sucessivas prisões e internações em clínicas de recuperação de dependentes. Em treze capítulos, ele parece contar a saga de um viciado que ‘eventualmente’ tocava jazz, tal a frequência com que manipulava seringas. O relato é despojado, impiedoso ao lembrar os ritos de dissipação, mas jamais sofrido.


Chet não faz papel de vítima, não dramatiza sua relação com as drogas. ‘Andy foi também a primeira pessoa a me apresentar à maconha, abençoado seja. Gostei e continuei a fumar durante oito anos, até começar a me picar e finalmente, me viciar. Gostava muito de heroína, e usei-a quase continuamente, de um jeito ou de outro, durante os vinte anos seguintes’ – confessa ele nas primeiras páginas.


O Andy (Lambert) citado era um contrabaixista que perdera uma perna servindo a Marinha e com quem, num conjunto, o trompetista daria seus primeiros passos na carreira. É um dos muitos músicos que surgem e somem ao longo do relato, dividindo palcos, gravações e atividades ilícitas com o narrador. O mestre e também viciado em heroína Charlie Parker aparece lá pelas tantas, quando Chet recorda o verão de 1952, um período especial abrangendo do dia em que foi selecionado para integrar a banda do saxofonista até o fim da curta temporada de shows pela Califórnia.


‘Ele me tratava como um filho, afastando qualquer um que tentasse me oferecer alguma droga. Durante os intervalos, eu costumava levá-lo a uma barraca de tacos, a poucas quadras do clube, e ele comia uma dúzia de tacitos com molho verde, coisa que adorava’ – conta. Gerry Mulligan, outra figura consagrada na época, o contratou logo depois para seu grupo.


Foi o primeiro quarteto de jazz sem piano, que, na ausência do instrumento harmônico, vivia da sobreposição entre as linhas melódicas desenhadas pelo sax de Mulligan e pelo trompete de Chet. Foi o ápice de seu prestígio. Com o Quarteto, gravou vários álbuns e chegou a faturar o prêmio de ‘melhor trompetista’ do ano da revista Down Beat. Foi também o início da desgraça. Ele seria detido pela primeira vez pela polícia, e Mulligan passaria oito meses atrás de grades, condenado por porte de heroína.


Chet nunca teve moradia fixa. Trocou diversas vezes de cidade, e também de mulher. Alguns de seus casos amorosos são relatados com alguma displicência no volume. Os nomes de Cisella, Sherry, Charlaine, Liliane, Halema e Carol (responsável pela compilação dos textos reunidos no livro) desfilam pelos capítulos pulando de sua – em suas próprias palavras – ‘longa lista de adoráveis damas’.


Durante uma temporada em Londres, Chet mantinha o vício com a ajuda de uma médica. Ele conta: ‘Era obrigado a lhe telefonar por volta das nove e meia da manhã, esperar que ela escrevesse a receita e a enviasse para a farmácia perto do estúdio. O farmacêutico embrulhava as drogas, chamava um táxi, e eu recebia a encomenda no estúdio. Saía correndo para o meu trailer e injetava o coquetel de cocaína e heroína, até que alguém me chamasse’.


A narrativa é comedida em comentários musicais. Chet fala de sua fascinação pelo álbum ‘Birth of the Cool’, lançado por Miles Davis em 1948. ‘Ainda hoje, quase trinta anos depois, ouço muitas vezes esse disco’ – observa. Em outro trecho, faz uma constatação desoladora. ‘Parece-me que a maioria das pessoas só se impressiona com três coisas: a rapidez com que se pode tocar, a altura que se pode atingir e o volume do som produzido. Acho isso um tanto exasperante, mas agora, mais experiente, vejo que provavelmente menos de dois por cento do público sabe realmente ouvir. Quando digo ouvir, quero dizer seguir um instrumentista através de suas idéias e ser capaz de entender essas idéias em relação com as progressões harmônicas, se elas são completamente modernas’.


A devastação provocada pelo vício foi tirando-o de cena a partir dos anos 60, com hiatos para uma gravação ou outra. Depois de uma briga de rua na Itália, estourou a boca ficando praticamente sem dentes, o que o impediu de tocar durante várias temporadas. Há quem diga que nos últimos anos de sua vida, ele teria sido trapaceado por empresários e explorado por clubes.


A propósito, convidado para participar do Free Jazz Festival em 1985, ele recebeu o menor cachê entre as estrelas internacionais. Na ocasião, muitos ficaram impressionados com sua fisionomia. Tinha 53 anos, mas aparentava 80. E seu show não teria sido dos melhores, sendo massacrado pela crítica. O definhamento e o estigma de decadente pareciam se confirmar.

No dia 13 de maio de 1988, Chet silenciaria seu trompete despencando do segundo andar de um hotel em Amsterdã, o centro das drogas na Europa.
Serviço:
‘Memórias Perdidas’. Chet Baker. Tradução e notas de Luiz Orlando Carneiro. R$ 17,00. Editora Jorge Zahar. Tel. (21) 2240-0226.


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