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Já escutou?

Conheça o lo-fi, a música da pandemia que busca o silêncio na era do barulho

Guilherme Luis e Henrique Artuni/Folhapress
17 dez 2021 às 10:11
- Pixabay
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Ninguém precisa de uma câmara anecoica para saber que o silêncio não existe. Mas o músico John Cage queria ter certeza e, ao entrar numa sala dessas, que bloqueia todos os barulhos do exterior, ele continuava ouvindo os sons de sua circulação e sistema nervoso.


Se essa experiência nos anos 1950 foi fundamental para que o artista entendesse que silêncio mesmo, só morto, e brincasse com isso em peças como "4'33''" –em que o pianista nem toca no piano–, o que vale mesmo hoje é ter um bom fone ou caixa de som para encontrar sua paz interior.

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Segundo Felipe Gue Martini, pesquisador e doutor em comunicação, encontrar o silêncio depende de entender isso como uma presença, e não uma ausência. "Há uma relação direta com nossa dificuldade atual de se desligar da superexposição midiática", ele aponta.

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Martini lembra a distinção entre o mundo pré-industrial –em que os sons seriam percebidos em alta fidelidade, ou hi-fi, claros e distintos– e o ambiente urbano –de baixa fidelidade, ou lo-fi, em que tudo, do cachorro do vizinho ao barulho dos aviões, compõe uma faixa chapada e ruidosa.

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E enquanto essa dispersão nos priva do foco, ela também permite achar o silêncio possível –e até virou gênero musical. "Considero até mais como um modo de produção", corrige Daniel Sander, nome real do artista Colours in the Dark.


O carioca, que soma mais de 750 mil ouvintes mensais no Spotify, é um dos vários que mergulharam no "lo-fi hip-hop" –um ritmo de batidas lentas, que mistura chiados analógicos e o que mais o produtor quiser–, que ajuda milhões de pessoas a se concentrar, estudar, criar um clima para transar, ou até pegar no sono. "Com a música, você foca e os pensamentos param completamente", diz ele, que acaba virando seu próprio público-alvo –e cobaia.

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Curador de diversas playlists e criador do selo Sleep Tales, Sander testa sons seus e de outros artistas para avaliar a eficácia. Se alguma faixa o acorda no meio do sono, já sabe qual deve cair fora.


De acordo com Tiago Frúgoli, beatmaker e educador musical, o lo-fi ajuda a escolher o clima do que você quer ouvir antes de decidir o que vai apreciar –tal qual o algoritmo do Spotify. Ele reconhece ainda o método simples e intuitivo de produção.

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Produzir um lo-fi, diz, é como cortar pedaços de papel e fazer uma colagem a partir de sons repetidos, mudando o compasso ou tom. E, ainda que não seja a praia de Frúgoli, o gênero pode combater a ansiedade ou "acalmar e ajudar a dar conta dos afazeres".


Dessa forma, bombam canais com lives em que o lo-fi embala os usuários que tentam se concentrar enquanto leem, estudam ou trabalham. É o caso de Victor Almeida, que começou no YouTube com o canal literário Geek Freak e hoje também faz lives na Twitch, no perfil Geefe, que tem mais de 35 mil seguidores. "Com [a música], eu consigo abafar o som do ambiente e focar na leitura", diz. Em suas transmissões, ele cronometra períodos de leitura e convida o público a fazer o mesmo.

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A tendência é um efeito intuitivo para seus artistas e consumidores, mas a base é científica. Não só no lo-fi –que acumula milhares de ouvintes de maneira crescente–, mas em todo um filão de playlists e vídeos do YouTube.


O cardápio vai de sons da natureza, chiados de TV e ruídos "coloridos", feitos em determinadas frequências, assim como a luz, até remixes de música clássica e vídeos que recriam ambientes da ficção, como a escola de bruxaria Hogwarts, de "Harry Potter", e a Terra Média de "O Senhor dos Anéis". Almeida, por exemplo, lembra que usou o lo-fi temático da obra de Tolkien enquanto lia a saga.

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Essas opções têm em comum o fato de que não há momentos sem som –sempre ao menos um ruído constante ao fundo– e são oferecidas em vídeos ou playlists extensas. Nisso, há duas grandes estratégias para atingir a mesma barreira sonora. O trabalho criativo do lo-fi, dos cenários fictícios e trilhas conhecidas, por um lado, nos pegam pelo sentimento.


"Varia de pessoa para pessoa, mas a ideia é acessar memórias afetivas que tragam uma sensação de relaxamento", diz o musicoterapeuta e professor de canto Públio Gimenes. Não é à toa que o lo-fi se apresenta sob o signo da nostalgia, misturando animações japonesas, fotografia analógica e outras referências caras a quem cresceu nos anos 1990.

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Por outro lado, sons binaurais e frequências específicas –algumas, inclusive, que nem podemos escutar– atuam nas ondas cerebrais, ajudando na concentração. São experimentos que partem ora de percepções espirituais –sons alinhados aos espectros de luz dos astros, por exemplo, e sua relação com os chacras–, ora como fruto direto de pesquisas da neurociência.


Gimenes lembra, porém, dos perigos de usar fones por longos períodos e em volume acima dos 30% adequados –o indicado mesmo é usar uma caixa de som portátil. "Ritmos tranquilos vão fazendo que o batimento cardíaco diminua, a respiração fica mais profunda."


Há ainda o ASMR, ou resposta sensorial autônoma do meridiano, outra categoria de vídeos, que trazem uma sensação de formigamento por um lado interativo –e até erótico. Neles, uma pessoa, na maioria, mulheres, performa com um microfone especial, em vídeos que incluem de sussurros e mastigação a interpretação de personagens –como médicas, mães ou namoradas que vão ninar os ouvintes. Isso quando o ouvinte não vai direto para serviços com contos eróticos ou masturbação guiada.


O mercado consegue se adaptar e criar uma nova sustentabilidade a partir das tendências, reflete Martini. E, para que os usuários atinjam a satisfação, é necessário um pagamento. "É como entregar o ouvido em sacrifício para alguma coisa que é simplesmente dormir e acordar. Ao oferecer um órgão de contato com o mundo, eu consigo me desligar, mas sigo gerando riqueza", diz.


"O nosso ritmo de produção é um pouco diferente", pontua Yuri Bastos, ou Linearwave, como é conhecido no Spotify, onde acumula quase 1,6 milhão de ouvintes mensais com seu lo-fi. O jovem de 31 anos, que tem formação em música, chega a lançar até quatro faixas por semana.


Seu desafio agora é entender o gênero fora do ambiente virtual. Em novembro, Bastos, Sander e outros artistas desse universo se reuniram para apresentar a música em um show no Rio de Janeiro –algo pioneiro no mundo.


"Eu vejo [o gênero] como uma continuação da história da música instrumental, que pode ficar mais acessível ao público", diz Bastos.


Ao mesmo tempo, essa vertente popular compartilha o zeitgeist de minimalistas como o alemão Max Richter, que em 2015 lançou o monumental "Sleep", um álbum com oito horas e meia de duração. Quando foi apresentar a obra ao público em Los Angeles, seu concerto não tinha pistas ou cadeiras, mas camas.

"É impressionante ver quantos lo-fi reinventam a 'Gymnopédie' do Erik Satie, o ícone dessa música etérea", lembra Bastos. "O mundo está mais conectado do que nunca e todos esses estilos conversam. No final, a gente está se escutando" –cada um no seu silêncio.

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