"Um poeta desfolha a bandeira e a manhã tropical se inicia resplandente, cadente, fogueira num calor girassol com alegria na geleia geral brasileira que o Jornal do Brasil anuncia." Assim diziam Gilberto Gil e Torquato Neto, em sua canção-manifesto, citando a expressão do poeta Décio Pignatari: a "geleia geral", que representa a sociedade brasileira, imersa em uma contradição. Enquanto vivia (vive?) em meio à modernidade, ainda está presa à tradição.
E, assim como a canção, o documentário "Torquato Neto – Todas as Horas do Fim" mergulha na geleia geral brasileira, trazendo um retrato da vida do "anjo torto", como é conhecido o poeta, jornalista, letrista, cineasta e tantas outras coisas. Fugindo da convencional montagem de documentários, os diretores Eduardo Ades e Marcus Fernando buscam o Tropicalismo na linguagem do longa, assim como nos filmes dos quais Torquato participou.
O desafio dos diretores foi o de conseguir lidar com a falta de material do poeta. Há, por exemplo, apenas um registro sonoro de Torquato. A saída, em um primeiro momento, como explicaram os cineastas em entrevista ao "Cinema em Cena", foi o de montar o documentário de forma "tradicional": "Inicialmente, imaginamos as pessoas dando entrevista para a câmera, com alguns momentos cobertos por outras imagens. Chegamos inclusive a montar o filme dessa forma", disse Marcus. Mas o problema, acrescentaram, é de que era um "formato convencional demais", afinal, Torquato, em sua marginalidade, é conhecido pela quebra de modelos.
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Aí entra a grande sacada do filme. A montagem de todo o longa-metragem alterna entre cenas do cinema novo e marginal, fotos e entrevistas, com a narrativa marcada pela leitura de poemas do próprio Torquato, na voz do ator Jesuíta Barbosa. Uma ótima saída para o pouco material disponível, que foge do "tradicional" e se aproxima da linguagem tropicalista pregada pelo poeta.
As cenas de outros filmes são usadas inclusive como recurso narrativo, como no momento em que se fala do nascimento de Torquato, utilizando-se o parto de "Macunaíma", longa de 1969, de Joaquim Pedro de Andrade. Assim, "Torquato Neto – Todas as Horas do Fim" também é uma grande homenagem ao cinema brasileiro.
A estética "suja" do filme condiz com a poética de Torquato. As entrevistas foram gravadas em Super-8, formato adorado pelo artista.
A construção do personagem é feita por meio dos entrevistados. A produção teve o cuidado de coletar relatos somente de pessoas que tiveram contato direto com Torquato, que o conheceram. Tom Zé, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Ivan Cardoso... As falas aparecem quase sempre em off, coberta por imagens de Torquato, em uma tentativa de fazer com que o poeta não fosse o assunto, mas, sim, o protagonista. O filme erra ao identificar apenas em poucos momentos de quem é o relato ao fundo. São muitas as entrevistas e dificilmente alguém conseguirá reconhecer cada uma das vozes todas as vezes em que aparecem.
O longa peca também ao ser difuso em relação às informações dadas, o que seria um grave erro em qualquer documentário "tradicional", mas acaba sendo suavizado pela tentativa dos diretores em fugir ao comum. Há pouco didatismo e muitas vezes é preciso que o espectador tenha algum tipo de contato prévio com Torquato para entender o contexto. Na mesma entrevista ao "Cinema em Cena", Eduardo Ades disse que "às vezes, a gente falava assim: 'será que isso não deveria ser explicado?' E na sequência, concluíamos: 'isso a pessoa acha na Wikipédia'. Não precisaria estar no filme, seria a opção pelo convencional, pelo careta".
Foi feita uma opção pelo "básico", como explicou Marcus, principalmente por ser o primeiro filme a apresentar Torquato. Apesar disso, essa opção pelo "não-careta" pode prejudicar justamente por ser um personagem pouco conhecido do público, mesmo dentro do Tropicalismo. Então, talvez uma opção mais "tradicional", mesmo que não completamente, pudesse ajudar na construção de uma narrativa mais sólida.
"Torquato Neto – Todas as Horas do Fim" apresenta um personagem interessante e pouco conhecido do público, em uma linguagem – tanto estética quanto narrativa – que consegue homenagear o Tropicalismo do protagonista, mas peca ao deixar informações que deveriam ser um dos principais focos, em uma tentativa de fugir do "tracionalismo".
Em Londrina, "Torquato Neto – Todas as Horas do Fim" está em cartaz no Royal Plaza Shopping, diariamente às 19h. Confira a programação completa de cinema na cidade aqui.