Os organizadores de uma exposição em janeiro deste ano afirmaram que aquela seria uma mostra dez vezes maior do que a Bienal de Veneza. Poderia até ser a exibição mais visitada da história - desbancando sucessos como a mostra de Leonardo Da Vinci no Louvre, em Paris, que chegou a mais de 1 milhão de visitantes. E isso porque a mostra aconteceria dentro do "Fortinite", um dos jogos mais famosos do mundo.
Com essa exposição do artista Kaws, que aconteceu ao mesmo tempo em espaço físico, realidade virtual e no game, o museu britânico Serpentine se junta a outras instituições culturais que parecem ter dado um passo à frente das muito enfadonhas mostras virtuais. Agora, as artes visuais se valem dos jogos desenvolvidos nesse mercado bilionário para desenvolver projetos e atingir novos públicos.
E, de fato, atingiu. Cerca de 100 milhões de jogadores passaram pela Serpentine dentro do "Fortnite" segundo Daniel Biembaum, organizador da exposição e também diretor artístico da empresa Acute Art, especializada em produções no ambiente virtual.
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Biembaum lembra que a Acute Art já desenvolveu projetos em realidade virtual ou aumentada para o Serpentine com artistas como o argentino Tomás Saraceno e o chinês Cao Fei. "Mas o projeto do Kaws é diferente porque pode ser visto de qualquer lugar do mundo. É uma exposição física, com pinturas e esculturas, na galeria em Londres, mas os mesmíssimos trabalhos, assim como todo o prédio, estavam visíveis no 'Fortnite'", ele conta.
O Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, foi outro espaço expositivo a chegar ao universo virtual no começo da pandemia –mas suas obras e prédio no meio do parque Ibirapuera foram remontados com os bloquinhos do "Minecraft".
"O projeto começou no auge da pandemia, quando a gente percebeu que ninguém mais aguentava tela", conta Cauê Alves, curador-chefe do museu. "Ele foi um modo de se relacionar e se comunicar com uma geração que talvez não tenha tanto o hábito de visitar o museu, tanto online quanto presencialmente."
No jogo, voltado mais para crianças e adultos, é possível reconstruir obras de artistas como os neoconcretistas Hélio Oiticica e Amilcar de Castro e do pintor Paulo Pasta, além de saber mais sobre a história do museu e dos artistas. Eles se aproveitaram da estrutura em bloquinhos do "Minecraft", aliás, para criar as dinâmicas dos jogos em cima de obras bem geométricas.
"Isso parte da própria origem do museu, que nasce no final dos anos 1940 muito imbuído do ideal construtivo", lembra Alves.
Quem desenvolveu o projeto no MAM foi Francisco Tupy, que já havia sido premiado por reconstruir esculturas destruídas pelo Talibã dentro da plataforma. A longo prazo, Alves também espera que seja possível encomendar trabalhos para o ambiente virtual.
Mesmo que a pandemia tenha acelerado ainda mais a proximidade das instituições culturais com o mundo virtual, a relação entre arte e games não é nova. A designer e pesquisadora Julia Stateri identificou em sua tese de doutorado, "O Videogame e as Complexidades Possíveis", que também se tornou um livro, que os anos 2010 marcaram um reconhecimento dos games numa série de exposições.
Foram os casos das mostras "Game-Story", no Grand Palais, em Paris, e "Excellence in Design" no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA.
"Encontrei tanto jogos sendo expostos, como se fossem produtos, quanto jogos tirados do contexto de produção e consumo, unicamente trazidos para o espaço museológico", conta ela, lembrando também que vários artistas passaram a usar os jogos como uma plataforma para os próprios trabalhos.
O problema que Stateti encontrou nessa movimentação é que uma série de jogos iam parar em museus como uma validação artística. Segundo ela, é um movimento análogo ao da migração dos grafites do contexto da cidade, de um espaço aberto, para dentro do museu.
"Poder visitar o MoMA, por exemplo, navegando virtualmente porque não tenho condições nesse momento de viajar, de certa forma democratiza o acesso à cultura, apesar de nunca ser a mesma experiência. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que não é todo mundo que tem acesso às tecnologias necessárias para acessar nem remotamente."
Mas é possível estar dentro de um game e ter um contato com obras de arte que não seja mediado pelo jogo e pelo entretenimento? A artista e pesquisadora Giselle Beiguelman lembra que a tela não tem uma questão essencial para as exposições -a escala.
"Por que eu faço uma mostra? Por que não jogo tudo num acervo e abro para as pessoas andarem? Porque a construção do espaço é chave na exposição", afirma ela. Segundo Beiguelman, é a realidade aumentada, que parece uma encruzilhada entre a escala da vida real o universo virtual, que pode oferecer caminhos para essa produção artística online.
"Também é um desafio pensar um game fora da órbita do entretenimento e da competição, de pensar nele como um espaço colaborativo, como um local não de reação a ações, mas de proativismo", diz ela.
E, nesse campo do virtual, as possibilidades parecem mesmo não ter fim -e às vezes soam um tanto esdrúxulas. O "Fortnite", por exemplo, já se estruturou como um metaverso, um espaço, e recebeu até shows da Ariana Grande.
Isso parece interessar gigantes da tecnologia como o Facebook, mas também o mercado da arte. "Frequentemente sou convidado para seminários sobre o chamado metaverso, e acho que essa exposição do Kaws é a primeira que acontece num metaverso que já existe", afirma o organizador da mostra do Serpentine.
"É também a primeira vez que vários desses jovens jogadores visitam um evento artístico, isso é uma possibilidade de democratização da arte." Resta saber, afinal, quem vai habitar esse universo paralelo virtual.