Artes Visuais

A vida vista através do café

28 mar 2014 às 17:26

Dois homens conversam sentados debaixo de uma árvore sombrosa, observando o horizonte verde da lavoura. A cena pode passar a ideia de sossego, contentamento ou até preguiça. No entanto, ao ser clicada por Armínio Kaiser, passou a compor seu vasto acervo de fotos que ilustravam o tempo do café no Paraná - principal tema de seus aproximados 3 mil registros -, e que vinham acompanhadas com um grande viés de crítica social.

A dita foto, nomeada de "Esperando Godot" – em referência à peça de teatro escrita pelo dramaturgo irlandês Samuel Beckett, publicada pela primeira vez em 1952 –, traz, na verdade, grande aflição e desesperança. "Os dois olham para o horizonte com aquela esperança de o café voltar a brotar, mas que sabem que não vai voltar", interpreta o produtor cultural e professor Edson Vieira, que trabalhou com Kaiser na seleção das imagens para o primeiro livro do fotógrafo, "Ao sabor do café", lançado em 2008.



Florada registrada no distrito de Itaúna-PR



Armínio Archimedes Pedro Gonçalves Kaiser nasceu em 2 de novembro de 1925, em Salvador – à época, chamada Cidade da Bahia. Começou a estudar Agronomia em seu Estado de nascença e terminou em Piracicaba, São Paulo. Formado, foi para Belo Horizonte onde trabalhou com tecnologia de alimentos. Depois disso, voltou a São Paulo e em 1953 entrou para o Instituto Brasileiro do Café (IBC). Prestou serviços no Estado paulista quando, em 1957, foi transferido para Paranavaí, para cuidar dos problemas de erosão na cidade paranaense. Passados três anos – já casado e às vésperas do nascimento da primeira filha, Olga – Kaiser transferiu-se em 1960 para Arapongas para, em 1964 assumir a chefia do Serviço Regional de Assistência à Cafeicultura, em Londrina. Apesar disso, o agrônomo morou na Cidade dos Pássaros até 1970, quando finalmente chegou a Londrina.



Fazenda em Santa Fé-PR (1962)



Datalhe da colheita do café em Astorga-PR (1962)


Em 1966, trabalhou como supervisor da erradicação do café no Paraná. À época, a produção encontrava-se saturada devido aos grandes estoques do IBC, que comprava e estocava a produção dos cafeicultores. A erradicação do café acabou culminando com o êxodo rural e inflando as cidades e habitando as periferias. "O problema é que muitas pessoas não tinham outra coisa a fazer e acabaram ficando a mercê. O Kaiser era um interessado em conhecer aquela realidade, adentrou em um mundo diferente do seu. Um dia, abriu a marmita de um boia fria para saber o que eles comiam. Ele achava que as pessoas não gostavam daquela vida, que havia um sofrimento e as pessoas estavam fadadas àquilo", conta.



Erosão em Paranavaí (1965)


Daniel Choma

Armínio Kaiser em 2009, com seu primeiro livro, "Ao sabor do café"


O menino que ilustra a capa de seu primeiro livro é outro exemplo da preocupação de Kaiser com a vida das pessoas na lavoura do café, e mais ainda – com o modo de como era visto por eles. "Ele tinha essa coisa com a foto do menino encarando, e ele ficava pensando o porquê daquele olhar do garoto. Fez questão que a foto ficasse na capa". Dentre outros cenários, "Ao sabor do café" retrata a arrancada, a erosão, o plantio, o cotidiano, a florada, os processos de colheita e secagem do café, além do enfoque nos pequenos produtores e ainda momentos difíceis como a geada, o grande incêndio e o ‘desassossego’, como Kaiser chamou para refletir a angústia – ao ser ver – vivida pelos trabalhadores da lavoura na época. Posteriormente, teve mais dois livros publicados: "Grãos de ouro em sais de prata" (2009) - também com fotos do café no Paraná - e "Ao aroma do café" (2013) - este, um recorte do acervo do estado de São Paulo. Seus primeiros registros do café foram em 1957, e seguiram até a década de 70 – quando as plantações entraram em baixa -, mas foi terminar somente em 1989, quando Kaiser se aposentou do IBC.



O rapaz que intrigava Kaiser com seu olhar. Arredores de Londrina (1967)



Repicagem de novas covas de café plantada em nível. Fazenda nos arredores de Londrina (1957)


Coração que batia com o clique


Primeira filha de Kaiser, Olga – nascida em 1960 – conta que o pai, por vezes, levava consigo até três câmeras – uma para registrar para o IBC, outra para si mesmo, e outra para fotografar a família. São itens de suas principais características: a organização. Suas fotos estão todas guardadas em um envelope, com registro de filme, sol, horário, entre outras anotações. "Ele fechava o quarto inteirinho, vedava as frestas com jornal, e não podia expor a foto a nenhuma luz", recorda Olga. "Depois, ia pra garagem, que nunca foi pra carro. Era o estúdio de casa. Só abria com luvas, fazia a ampliação e deixava secando. Era a nossa ‘boatezinha’".



Procissão que pedia o fim dos incêndios rurais - Ribeirão Fernão Dias, divisa entre os municípios de Astorga e Munhoz de Melo-PR (1963)



Depósito de troncos de cafeeiros erradicados, transformados em lenha. Sítio em Londrina (1967)


Para a filha, Kaiser queria flagrar as pessoas inseridas em seus universos. A opinião coincide com a do pai, que escreveu, sobre sua fotografia: "Desapercebidamente enfocava, de preferência, assuntos que interessavam mais a um sociólogo ou antropólogo em vez dos estritamente ligados à minha profissão de agrônomo, uma vez que não tinha compromisso com os outros". Sem compromisso, as fotos do acervo, segundo Olga, são puramente hobbie. Todas essas imagens serão doadas para o Foto Clube de Londrina, do qual Kaiser é um dos fundadores. A ideia da associação, por sua vez, é levar o material ao Museu Histórico de Londrina.



Pai leva caixão da filha recém-nascida para o cemitério. Mandaguari-PR (1967)



Kaiser, que adorava ler e tinha uma vasta biblioteca em casa, comprou um livro no dia 8 de fevereiro e o leu até o dia 11, quando passou mal e teve que ir para o hospital. Acabou falecendo nove dias depois de sua internação, aos 88 anos, de problemas respiratórios. O "fotógrafo do café", como ficou conhecido, costumava dizer que era um homem de sorte. Foi casado com Maria Jovita - antiga professora da rede estadual de ensino e ex-secretária da educação -, com quem viveu por 44 anos, até a morte dela, em 2003. Segundo a filha mais velha do casal, Kaiser casou-se com ‘alguém que o entendeu’, quando resolveu ir para Paranavaí quando não havia energia elétrica e serviço de água potável.



Os dois homens com olhar de desesperança ao horizonte, nos arredores de Cambé (1967)


O baiano de nascimento fez sua vida no Paraná, mais especificamente em Londrina, onde, desde que chegou, nunca mais quis sair. Na cidade, construiu sua família. Além de Olga, Kaiser tem mais uma filha, Ilza – que mora atualmente em Bauru, São Paulo –, e três netos – Beatriz, André e Marina, seus modelos favoritos. "Meu pai tirava foto de qualquer coisa, era uma paixão", finaliza Olga.


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