Apesar de diferentes sotaques e variações regionais, Portugal e Brasil têm o mesmo idioma oficial. Na prática, no entanto, escolas e universidades portuguesas apontam as diferenças, e estudantes e responsáveis relatam episódios de notas mais baixas e de discriminação por conta do português brasileiro.
Com a filha tendo aulas online devido à pandemia, a psicóloga goiana Adriana Campos presenciou um diálogo entre a jovem e a professora de português. Na conversa, a aluna questionava o motivo de ter tirado nota menor que a colega portuguesa com quem fizera um trabalho em dupla.
"A professora falou que o trabalho estava excelente, elogiou a criatividade das duas, mas disse para a minha filha: 'só que você, infelizmente, ainda fala esse português inapropriado, esse português brasileiro. E você precisa aprender a falar direito'. Eu não conseguia acreditar", disse.
Segundo ela, a mesma professora já havia protagonizado, meses antes, outro episódio de discriminação linguística com a adolescente, quando ridicularizou seu sotaque.
"A professora estava fazendo algumas perguntas para os alunos. Quando chegou a vez da minha filha, ela disse que a dicção dela estava muito ruim, que ela não sabia falar bem. Mas o problema não era a dicção, era o sotaque. A professora mandou a minha filha colocar um lápis na boca para treinar e 'aprender a falar melhor'", afirmou.
Segundo Adriana, a jovem de 17 anos ficou constrangida e disse que faria o exercício em casa, mas a professora insistiu. "A professora ainda fez graça, colocou um lápis na própria boca pra debochar. A minha filha foi ficando tão envergonhada que ela saiu da sala chorando", completa.
Aluna de doutorado em psicologia na Universidade de Coimbra, Adriana diz que procurou a escola, mas que a professora justificou seu comportamento com base em alegadas orientações do Ministério da Educação, sem dar detalhes.
Em busca de orientações, Adriana relatou o caso em um grupo de apoio a mulheres brasileiras em Portugal. Ela diz que a quantidade de relatos de imigrantes que passaram pela mesma situação foi uma surpresa -são pelo menos 20 depoimentos até agora.
"Eu fiquei espantada com a quantidade de mães que entraram nos comentários, falando que isso aconteceu com o filho delas também. Ou seja, não é um fato isolado", avalia.
A mineira Ana Abrantes conta que o filho, de sete anos, foi tão repreendido pelo sotaque que desenvolveu pânico de ir à escola. "Meu filho sempre foi um menino alegre, que gostava de ir para a escola. Agora, ele chora antes de sair. Ele tem um coleguinha de turma que também veio do Brasil há pouco tempo, mas já assimilou o sotaque português. Há nitidamente um tratamento diferente para os dois", relata.
Ironicamente, o sucesso de youtubers brasileiros entre crianças e adolescentes portugueses fez com que algumas gírias, expressões e até um pouco do sotaque do Brasil acabassem pegando entre os jovens lusitanos. Mas o fenômeno, que é confirmado por educadores, não parece ter sido suficiente para mudar o tratamento de inferiorização do português do Brasil relatado em algumas escolas.
Embora o tema do preconceito linguístico seja objeto de conversas recorrentes entre os brasileiros no país, incluindo em associações de direitos dos imigrantes e relatos nas redes sociais, não há registro de queixas oficiais. De acordo com a Inspeção-Geral de Educação e Ciência do país, o órgão não recebeu nenhuma denúncia do tipo.
Em nota, o secretário de Estado da Educação de Portugal, João Costa, criticou a existência de qualquer segregação ou discriminação por diferenças no uso do idioma. De acordo com ele, os documentos que orientam o ensino da língua portuguesa no país "preveem o domínio do português europeu padrão, integrando também a consciência da diversidade de registros e de características das variantes faladas pelo mundo".
Pelos dados mais recentes da Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, referentes ao período letivo de 2018 e 2019, Portugal tinha 129.534 estudantes estrangeiros (em ensino básico, secundário e superior). Desses, 47.682 (36,8%) são brasileiros.
Embora já seja uma comunidade expressiva, o número de brasileiros está subrepresentado. Não entram nessa soma aqueles que têm dupla-cidadania portuguesa ou de outro país da União Europeia.
Um levantamento publicado em abril analisou o desempenho dos estudantes estrangeiros nas escolas do país, a partir das estatísticas oficiais dos alunos do 3º ciclo em 2016-2017. Entre as 404 escolas analisadas, mais de um terço segregava os estudantes migrantes em turmas com muito mais alunos estrangeiros.
Enquanto praticamente não havia diferença de desempenho entre portugueses e alunos vindos da União Europeia, os que vêm do Leste europeu tinham resultados levemente inferiores. Já estudantes do Brasil e dos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) tinham notas bem mais baixas. Brasileiros e africanos também foram mais reprovados ao longo do percurso acadêmico.
As queixas não se restringem às escolas do país. Universitários também reclamam de notas mais baixas e discriminação por conta do idioma.
Aluna de licenciatura em línguas e relações internacionais, Carime Costa, 23, conta que se mudou para Portugal, no ano de 2018, com o objetivo de concluir a faculdade e continuar a morar no país.
"No primeiro ano, eu tive duas matérias de português e, nas provas, alguns professores diziam que, se nós não escrevêssemos em português europeu, seríamos descontados. E foi isso o que aconteceu. Muitos de nós tivemos de entrar com recursos para não sermos reprovados", relata.
A falta de acolhimento da universidade e a discriminação de professores a fizeram sair do país. No começo de 2021, voltou para São Paulo e vai concluir o curso a distância.