Quando escuta que o governo federal tem argumentado que só ricos consomem livros, para defender a taxação do produto, o coveiro Osmair Cândido solta uma gargalhada.
Conhecido como Fininho, ele se formou em filosofia no Mackenzie há 14 anos, quando já estava na casa dos 40, mas gosta de literatura desde sempre. Os pais, no entanto, não tinham condições de comprar livros para ele e para o irmão.
"Eu ia na biblioteca, pedia emprestado, mas depois de um certo tempo senti necessidade de comprar os livros mesmo. É um tantinho caro, mas a gente compra. É melhor ter o Machado de Assis em livro, né?", comenta, sobre o autor de quem diz ter lido a obra completa.
O coveiro, que falou à reportagem durante o expediente no cemitério da Penha, em São Paulo, afirma que certa vez vendeu a televisão para gastar em literatura. "Ler livros economiza tolices", brinca.
A pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, na sua edição mais recente, mostrou que 46% das pessoas com renda familiar de menos de um salário mínimo são leitoras. Na faixa salarial seguinte, que recebe de um a dois salários mínimos, 51% têm o hábito de ler.
Isso não impediu a Receita Federal de produzir um relatório, nesta semana, afirmando que pessoas com renda de até dois salários mínimos não consomem livros e, por isso, eles deveriam ser tributados, com o objetivo de arrecadar recursos para políticas mais direcionadas.
É mais um capítulo da ameaça que a reforma tributária de Paulo Guedes impõe ao mercado editorial. A ideia é substituir as contribuições Pis e Cofins, que os livros não pagam por lei, por uma Contribuição sobre Bens e Serviços, com alíquota de 12%, a que eles estariam submetidos.
"Digo por experiência própria que esse discurso de que o brasileiro não gosta de ler é uma estratégia para justificar a ausência de políticas públicas voltadas ao livro e à literatura", diz Débora Garcia, produtora cultural que toca o Sarau das Pretas, com forte atuação nas periferias de São Paulo. "A postura de taxar livros é uma forma de afastar ainda mais as pessoas do acesso ao conhecimento."
A Frente Parlamentar em Defesa do Livro também emitiu, nesta quinta (8), uma nota em repúdio ao documento da Receita, afirmando que "as famílias com renda inferior a dez salários mínimos respondem por quase a metade do mercado de livros não didáticos". "Em vez de ampliar esse acesso, o governo busca restringi-lo."
"Não é ausência de interesse, é ausência de possibilidade", aponta a poeta Luz Ribeiro, uma das convidadas da Flip do ano passado, buscando resumir a relação dos brasileiros mais pobres com os livros.
"Quando eu vou nas feiras de livro da USP, da Unesp, encontro muitos dos meus pares lá. Pessoas pretas, pessoas que são lidas como pobres. Porque o livro vai para um valor mais acessível."
Ribeiro cresceu no bairro do Jardim Souza, na zona sul de São Paulo, e aos 33 anos mora no Capão Redondo. Herdou leituras da irmã mais velha e tinha acesso a livros pela biblioteca de sua escola da rede municipal. "Eu fui alfabetizada aos cinco anos e, desde então, minha grande companhia foram os livros."
Taxá-los, segundo ela, é mais uma maneira de dizer a pessoas pobres e negras que a intelectualidade não cabe a elas. "Se o livro custar 50, 60, até mil reais, a pessoa com recursos vai comprar. Isso só vai fazer com que corpos parecidos com o meu fiquem ainda mais distanciados da leitura."
No caso de Lívia Lima da Silva, que cuida da programação audiovisual do Sesc Belenzinho, a paixão por livros floresceu mesmo em meio a diversos empecilhos –não há biblioteca pública no bairro de sua família, Artur Alvim, e o acervo da escola estadual onde ela cursou o ensino médio ficava trancado, longe dos alunos.
Mas naquele momento, já era firme o hábito de ler, ganho na sala de leitura visitada esporadicamente por sua turma do ensino fundamental. Era o momento em que conseguia ter acesso a livros -o pai, metalúrgico, e a mãe, dona de casa, não tinham como comprá-los.
"A gente está sempre nesse lugar de entender que aquilo não é para a gente. Valoriza, mas entende que é inacessível. É bom, mas não é para você, porque você não é bom."
Animada pelas descobertas literárias que fez indo à biblioteca da Penha, em outro bairro da zona leste, prestou vestibular para jornalismo e letras. Cursou as duas graduações ao mesmo tempo e, depois, concluiu um mestrado em estudos culturais na USP, pesquisando escritores de saraus paulistanos.
Ao ouvir a proposta de que se deve tributar os livros porque os mais pobres não os consomem, ela suspira. "É um ciclo sem fim, né? Se as pessoas não leem, é porque não têm dinheiro. Se não têm dinheiro, elas não vão ler."
"A gente precisa, para além de pensar em não taxar livro, pensar ações para ofertar literatura para as pessoas", diz Garcia, do Sarau das Pretas. "O livro nunca vai ser a primeira opção para uma pessoa que tem que escolher entre comer e ler."