Um esquema de fraudes no Fies (Financiamento Estudantil), que pode chegar a R$ 1 bilhão, foi descoberto no fim de 2020, mas até agora o governo Jair Bolsonaro (sem partido) não alterou o sistema vulnerável a irregularidades. Além disso, instituições flagradas pelo próprio governo continuaram a receber recursos do programa.
Em novembro, funcionários do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) descobriram que ao menos um servidor do órgão alterava os cadastros do Fies para liberar pagamentos irregulares.
Liminares aleatórias ou vencidas eram incluídas no sistema para autorizar repasses a universidades que não tinham certidões negativas de débitos de impostos.
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Empresas sem essas certidões têm conseguido receber recursos com base em decisões judiciais. Mas a manobra ilegal enganava o sistema ao cadastrar documentos inválidos.
Dessa forma, grupos educacionais receberam de forma irregular recursos por meio das recompras de títulos do Tesouro, usados para a remuneração no programa. No Fies, o aluno contrai o financiamento e o governo paga as mensalidades em instituições particulares.
O FNDE é ligado ao MEC (Ministério da Educação).
Irregularidades ocorreram durante o governo Bolsonaro, mas há suspeitas de que o esquema exista desde 2014. As investigações apontam para participação de advogados na intermediação, com pagamento de percentuais aos envolvidos.
A União gastou, de 2014 a 2020, R$ 60 bilhões com recompras de títulos no Fies.
As intervenções criminosas identificadas eram operadas pelo agora ex-servidor do FNDE Flavio Carlos Pereira. No órgão desde 2012, Pereira era uma referência sobre o Fies tanto dentro da autarquia quanto para as empresas do setor –ele foi exonerado no fim de novembro.
Foram identificadas irregularidades em 22 mantenedoras, que controlam 34 instituições de ensino. Essas operações somavam, em novembro passado, R$ 5,4 milhões, e foram canceladas na ocasião.
As lideranças no FNDE e MEC, no entanto, trabalharam para abafar o caso, apesar de insistentes avisos dos servidores à frente da apuração, segundo documentos obtidos pela reportagem. Em 23 de novembro, um funcionário chegou a relatar que seu computador e sua mesa no FNDE foram devassados.
Arquivos de pendrives foram apagados. Imagens do circuito interno foram solicitadas e nunca disponibilizadas pela chefia do FNDE. Também há relatos de tentativa de recompra forçada por meio de outro sistema.
O MEC só reagiu publicamente após publicação sobre o assunto pela revista Veja, em fevereiro. Nota da pasta ressalta que a CGU (Controladoria-Geral da União) e a Polícia Federal foram acionadas e que a investigação começou por iniciativa própria.
Internamente, as medidas tomadas pelo MEC foram precárias, segundo relatos de servidores à reportagem. O sistema para liberação das recompras continua o mesmo e a análise de liminares válidas, por exemplo, é manual. Mais de 500 mantenedoras recebem dinheiro com as recompras mensalmente.
O FNDE é controlado por indicações do 'centrão'. O presidente, Marcelo Lopes da Ponte, é da cota do PP.
Das 22 mantenedoras identificadas na fraude em novembro, dez receberam recursos no mês seguinte, da ordem de R$ 5,3 milhões, segundo os dados mais recentes do FNDE.
Seis das 22 mantenedoras pertencem ao mesmo grupo, de propriedade do empresário Wellington Guimarães, do grupo Brasília Educacional. Ele controla faculdades em vários estados, como a Faculdade Unibrasília, e duas delas receberam recursos em dezembro, no valor de R$ 170 mil.
Em nota, o empresário defende que tudo foi legal e que nunca fez contatos com Flavio Carlos Pereira. Segundo ele, o grupo não foi intimado por qualquer órgão do governo para prestar esclarecimentos.
Também faz parte do grupo suspeito a mantenedora da Unisa (Universidade de Santo Amaro), de São Paulo. A instituição era controlada pelo empresário Antonio Veronezi, aliado do ex-ministro Abraham Weintraub e que, segundo o jornal Folha de S.Paulo revelou em 2019, conseguiu aprovação atípica de um doutorado na instituição.
Veronezi faleceu em janeiro de Covid-19. Na ocasião, foi homenageado pelo atual ministro da Educação, pastor Milton Ribeiro.
A Unisa foi procurada mas não houve resposta. Também provocados, MEC e FNDE não retornaram. A CGU informou que a apuração está em curso e a Polícia Federal não deu detalhes.
O advogado Fernando Dantas, mestre em direito público, afirma que a continuidade dos pagamentos vai contra a obrigação do governo de zelar pelo recurso público.
"É um ato de improbidade administrativa da parte de quem pratica no poder público, e também daquele que vai receber o crédito", diz. "Chama atenção que o controle de decisões liminares não é automatizado com outros registros, e fica sujeito à interferência humana."
A funcionária do FNDE que liderou as investigações no órgão, Renata Mesquista D'Aguiar, foi exonerada em 5 de março, dois dias após ter seu nome e do marido envolvidos numa operação que investigou superfaturamento na venda de testes da Covid-19.
Aguiar chegou à diretoria de Gestão de Fundos e Benefícios do FNDE com o grupo que atualmente controla o órgão. À reportagem, funcionários do FNDE estranharam a rapidez de sua saída, o que não seguiria a benevolência de integrantes do 'centrão' com investigações que atingem correligionários.
Foi a partir da iniciativa dela que o caso chegou à CGU e à Polícia Federal, e não pelas lideranças do FNDE e MEC. Procurada, Renata Mesquita D'Aguiar não quis se pronunciar.
O novo diretor da área, Gustavo Lopes de Souza, é uma indicação do PR. Ele foi nomeado no fim de março.
Também questionada, a equipe do ex-ministro da Educação Aloizio Mercadante (PT), que comandou o MEC durante o governo Dilma Rousseff, afirmou que não conhece nem indicou o servidor suspeito e que "não consta que as suspeitas de fraudes ou indícios de irregularidades tenham relação com suas gestões".
"As gestões do ministro Mercadante sempre foram auditadas e aprovadas pelos órgãos de controle", diz a nota, que defende apuração rigorosa dos fatos.