A geóloga Adriana Alves, professora do Instituto de Geociências da USP, já era ativa no debate racial e de gênero na maior universidade do país, mas foi com a pandemia de Covid-19 que esse lado se sobressaiu à sua pesquisa.
Alves assumiu interinamente a diretoria do escritório USP Mulheres, no lugar da professora Maria Arminda do Nascimento Arruda, durante o período de campanha para reitoria da USP. Arruda foi eleita vice-reitora.
Nesse período interino, já imaginava o desafio que seria lidar com as questões de gênero em uma instituição onde denúncias de assédio sexual raramente têm desfecho favorável às vítimas -como a demissão de um professor da Biociências após inúmeras denúncias de importunação e assédio a alunas e professoras- e que ainda luta para reconhecer os vieses existentes nos próprios campi.
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"Há um compromisso assinado pela erradicação da violência de gênero, mas não temos nada oficial sobre procedimentos a serem adotados ao investigar uma denúncia", avalia a geóloga.
Alves conversou com a Folha enquanto fazia experimentos no departamento de geoquímica do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça (conhecido pela sigla ETH). A sua rotina, já intensa pela divisão entre pesquisa, docência e maternidade, tornou-se ainda mais agitada com a coordenação do escritório.
PERGUNTA - Como encara o desafio da direção do USP Mulheres?
ADRIANA ALVES - Vejo como uma novidade boa. Após George Floyd, o racismo entrou em pauta, assim como o papel das mulheres. A indicação para o cargo não foi estratégica. Na campanha de eleição para reitoria, eu substituí a professora Maria Arminda [atual vice-reitora] e fui questionada se gostaria de assumir como coordenadora definitiva. Refleti um pouco, mas topei o desafio. Entendo que há questões que ou a gente faz parte da mudança, ou ficamos em uma posição confortável de só reclamar.
Se precisasse escolher um projeto absolutamente prioritário para o escritório, qual seria? Se tivesse que escolher um, seria o estatuto de equidade de gênero. Ele custaria dinheiro, mas mais do que isso implicaria uma mudança cultural, que não vai ser fácil de implementar, principalmente nos níveis mais altos de gestão.
O segundo seria mostrar que o viés inconsciente existe, porque somente quando a gente esfrega na cara da sociedade conseguimos fazer uma ação educativa. Ao contrário do que muitos pensam, não acredito que seja por maldade, mas sim uma normatização do cotidiano. Na primeira reunião oficial da nova gestão, a única pessoa escura -e não vou nem falar preta- era eu.
P. - Isso significa que os demais integrantes são racistas?
AL - De forma alguma, eles só naturalizaram que não há negros na alta gestão da maior universidade do país. Agora, naturalizar não é aceitável, assim como também não é natural uma banca de seleção para professor titular só com homens.
Precisamos demonstrar quais fatores levam as mulheres a ficarem para trás, como é o efeito tesoura, e, com isso, trabalhar para mudar essa cultura. A USP precisa voltar para a sala de aula.
P. - Recentemente, casos de professores da USP desligados após denúncias de assédio sexual vieram à tona. Tais denúncias não são poucas, segundo os coletivos feministas, mas raramente chegam à demissão ou expulsão dos responsáveis. Quais ações quer implementar para contornar esse problema?
AL - Falta na universidade um plano de equidade de gênero, com as questões de violência de gênero e os procedimentos de apuração muito bem detalhados, e pretendo entregar isso até o final da gestão.
O pilar do USP Mulheres é montar iniciativas para equidade de gênero na universidade e, nesse sentido, nossa ação é mostrar às denunciantes qual o caminho para chegar a esse desfecho citado. Hoje, faz-se uma sindicância, a comissão sindicante chega a uma conclusão, remete ao superior imediato e segue até as instâncias superiores.
Ao instituir um procedimento centralizado, retirando o peso dos colegas na investigação, o número de denúncias que vai adiante irá aumentar. Isso dá um caráter mais célere, e os casos chegam às altas instâncias com a velocidade necessária.
P. - O escritório já possui essas diretrizes bem escritas?
AL - Não. A gente tem um compromisso assinado pela erradicação da violência de gênero, mas não temos nada oficial sobre procedimentos perante uma denúncia. E isso é só pelo lado da violência, há um problema institucional em reconhecer o efeito tesoura mesmo em áreas como humanas e biológicas, consideradas com maior proporção de diplomados mulheres, mas isso não se reflete em professores titulares.
Vão falar que é social e que não é papel da universidade arrumar a sociedade, mas há um papel institucional em reconhecer que não é só sobre mérito. Considerar o peso da jornada dupla, do viés inconsciente, equilibrar esses pesos para enfim chegar ao mérito "puro". A USP tem se negado a fazer isso até hoje.
P. - Durante a pandemia, foram relatados casos de alunos que cometeram suicídio, e a senhora e demais professores negros escreveram uma carta chamando a atenção para o problema de vivência dos alunos negros na USP. Quais os meios práticos para contornar isso?
AL - Fortalecer o indivíduo é um ponto, mas é preciso também aprimorar os serviços sociais e de psicologia para atendimento dos alunos negros. Não adianta o fortalecimento se o sistema não mudar, é preciso uma mudança de percepção no tratamento, esse "color blindness" que parece assolar a USP.
Eu tenho um projeto de extensão com a Pró-Reitoria de Cultura e Extensão para promover acolhimento e conexão de estudantes negros, justamente porque hoje essa comunidade é maior na USP, mas eles ainda se sentem muito solitários em um ambiente elitizado. Demorei 35 anos para perceber que o problema não era meu.
P. - Por mais que essa seja uma gestão disposta a discutir, causa um certo incômodo trazer essas pautas?
AL - Sim, porque os gestores contemporizam. Propus vídeos educativos sobre viés inconsciente e fui desafiada a provar que ele existe primeiro -não que os números não falem por si. Quando a gente desenha, a pessoa aprende a lidar com a misoginia ou o racismo dela. Os docentes na USP gostam de uma provocação, e essa é uma que vale a pena ir adiante, porque tem um objetivo que é positivo para todos.
P. - Se pensarmos qual o objetivo da USP para as próximas décadas isso precisa entrar na ordem do dia hoje?
AL - Exatamente. A gente não pode perder os alunos cotistas porque eles se sentem fora de lugar. Escuto muito que eu cheguei até aqui, mas caso de sucesso não é política pública. E ninguém pergunta quantos antidepressivos eu tomei, se doeu, se foi difícil.
P. - Em que pé está a proposta de um programa de pós-graduação voltado apenas para mulheres negras?
AL - O programa está todo desenhado e aguardando financiamento. Apresentei o projeto para o Instituto Serrapilheira, que por sua vez apresentou para a Fapesp, e as agências de fomento disseram que é válido, mas questionaram qual é a contrapartida institucional: por que investir em bolsas de pesquisa para seis cientistas, qual a mudança que isso vai trazer para o cenário de 130 docentes negros em um universo de 5.700? Estamos nesse ponto de definir a contrapartida institucional, como viabilizar a contratação dessas pesquisadoras ou pelo menos a abertura de vagas nas áreas dos projetos de pesquisa. Sem isso, o financiamento privado não virá.
Raio-X Adriana Alves, 41
Possui graduação em geologia no Instituto de Geociências da USP, com doutorado direto na mesma instituição, e um período sanduíche na Universidade de Alberta, no Canadá. É professora associada desde 2010 no mesmo instituto e atual coordenadora do USP Mulheres.