O desejo do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) de deixar o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) com "a cara do governo" incluiu um pedido, feito ao ministro da Educação, Milton Ribeiro, para que houvesse questões que tratassem o Golpe Militar de 1964 como uma revolução.
Às vésperas do exame, o governo passa por uma crise que envolve denúncias de interferência em conteúdo e assédio moral de servidores.
O pedido de Bolsonaro teria ocorrido no primeiro semestre, segundo relatos de integrantes do governo.
Ribeiro chegou a comentar a fala com equipes do MEC (Ministério da Educação) e do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais), mas não levou o pedido adiante de modo prático, uma vez que os itens passam por longo processo de elaboração.
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Capitão reformado, Bolsonaro é defensor da ditadura militar (1964-1985), elogia torturadores e tem histórico de criticar o Enem por uma suposta abordagem de esquerda.
Após denúncias de interferência na prova por parte dos servidores, ele disse nesta semana que o exame começava a ficar com a "cara do governo" e voltou a criticar a prova.
A visão de Bolsonaro contraria os fatos e a historiografia, que apontam o movimento de 1964 como um golpe militar ou civil-militar, na visão de alguns historiadores.
Desde 2019, primeiro ano do atual governo, nenhuma questão sobre a ditadura caiu no Enem –de modo inédito desde que o exame é aplicado. Questionados, MEC, Inep e Palácio do Planalto não responderam.
Por causa da pressão por uma prova com a "cara do governo", servidores envolvidos com o Enem classificam o clima atual como desesperador: há temor com relação a possíveis perseguições e punições caso o exame desagrade Bolsonaro.
No último Enem, por exemplo, o presidente criticou uma questão que falava da diferença salarial entre os jogadores Neymar e Marta. Para ele, o tema seria ideológico.
Segundo servidores ouvidos pela reportagem, o presidente do Inep, Danilo Dupas Ribeiro, e o ministro não teriam tido acesso à prova durante a elaboração e nem à versão final. Também não teriam determinado exclusão de itens específicos, apesar da pressão pública e velada para enquadrar o exame e evitar questões consideradas de esquerda.
A Frente Parlamentar Mista de Educação tem cobrado o MEC e vai realizar, com entidades estudantis (Ubes e UNE), uma blitz para acompanhar a aplicação do Enem.
"A preocupação maior é com desmonte profundo que o governo busca no Inep e que fica claro na prova do Enem", disse o deputado Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da frente.
Desde o início deste governo há pressão para que a prova elimine temas que o presidente e apoiadores conservadores entendem como inadequados -por exemplo, ditadura, questões de gênero e até racismo.
A pressão ganhou proporções inéditas na gestão de Dupas Ribeiro à frente do Inep e de Milton Ribeiro no MEC. Ambos reforçaram recados e pressões: questões entendidas como subjetivas teriam de ser suprimidas.
Segundo relatos colhidos pela reportagem, as equipes envolvidas na elaboração da prova buscaram equilíbrio entre essa pressão, o atendimento à matriz de conteúdos do Enem e a coerência estatística da prova.
No meio do ano, uma nota técnica foi elaborada pela área responsável pelo Enem para determinar que a prova respeite essa matriz. Isso foi interpretado como um respaldo aos técnicos na escolha das questões técnica e pedagogicamente melhores.
Os itens do Enem são produzidos por professores por meio de editais públicos, e passam por longo processo de produção e calibragem de dificuldades. Depois, integram o Banco Nacional de Itens.
Técnicos do Inep afirmam que seria impossível, inclusive, atender ao pedido de Bolsonaro sobre contemplar a visão de que o golpe foi uma revolução também por causa desse processo –além de ela não ter amparo histórico.
Como o modelo de elaboração do Enem prevê calibragem das perguntas por nível de dificuldade, entre outros parâmetros, a versão final da prova depende da composição do conjunto.
Um fato estrutural relacionado a isso impede o atendimento do plano integral do governo: a escassez de itens prontos impede muitas trocas de questões. Não há produção e pré-testes de novos itens desde 2019.
Denúncias, reveladas pelo programa Fantástico, da TV Globo, indicam que ao menos 20 itens foram suprimidos da versão inicial.
Segundo relatos de quem teve acesso ao material, várias questões retiradas na primeira leitura tiveram de voltar para a prova principal para garantir a robustez da avaliação. Outros foram integrados à outra prova que será aplicada para pessoas privados de liberdade.
O Enem 2021 começa no próximo domingo (21).
Neste mês, o Inep, que organiza o exame, passou por uma debandada: 37 servidores entregaram cargos de chefia citando "fragilidade técnica e administrativa da atual gestão".
O MEC minimiza a movimentação e diz que os pedidos de demissão têm relação com mudanças em pagamentos de gratificações, o que é negado pela equipe.
Ao menos outros 54 servidores assinaram ofício de apoio aos demissionários e cobrando o MEC.
Em 2019, o Inep criou uma comissão que censurou questões do Enem. Esse grupo foi responsável por vetar questões sobre ditadura, por exemplo.
Em junho deste ano, a Folha de S.Paulo revelou que uma portaria do Inep estabelecia uma espécie de "tribunal ideológico", com a criação de uma nova instância permanente de análise dos itens das avaliações da educação básica.
O documento falava em não permitir "questões subjetivas" e atenção a "valores morais" e ia contra posicionamento técnico do próprio Inep.
O MPF (Ministério Público Federal), ao comprovar as informações da reportagem, já recomendou que o governo Bolsonaro se abstenha de criar esse filtro ideológico.
A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão considerou que o ato pode representar ataque à liberdade de expressão e ao pluralismo de ideias.