A prioridade do governo Jair Bolsonaro (sem partido) para regulamentar o ensino domiciliar ainda neste primeiro semestre de 2021 provocou um manifesto contrário da Anec (Associação Nacional de Educação Católica do Brasil).
A entidade, que reúne mais de mil escolas católicas no país, ressalta as fragilidades da modalidade e critica, principalmente, o plano de aprovar o tema no meio da pandemia de coronavírus. Isso ignora, diz a associação, as urgências educacionais no período.
O chamado homeschooling é uma pauta histórica de grupos conservadores. Por isso, o governo quer, com a aprovação, dar um aceno à sua base de apoio guiada por princípios cristãos e ideológicos.
O manifesto da Anec, ao qual a reportagem teve acesso, reforça que o tema também não é consenso entre grupos religiosos.
A entidade considera não ser possível uma aprovação "sem uma discussão apropriada, técnico-científica e que leve em consideração uma educação que promove a vida, a diversidade, a pluralidade de ideias e concepções".
Já há acordo com lideranças da Câmara para que o projeto de lei possa ir direto ao plenário, sem passar pela Comissão de Educação, onde poderia haver um aprofundamento das discussões.
"Implantar o ensino domiciliar de forma abrupta e unilateral é ignorar as vozes que se erguem a favor das infâncias e das juventudes e de toda a trajetória da construção das legislações que envolvem a educação no Brasil e as metodologias que foram desenvolvidas por especialistas ao longo de anos de pesquisa e estudos", diz o manifesto.
O governo Bolsonaro tem sido criticado por eleger o ensino domiciliar como a única pauta prioritária da educação no Congresso em detrimento de outras urgências, como o enfretamento dos reflexos da pandemia no ensino, a nova etapa de regulamentação do Fundeb ou a criação do Sistema Nacional de Educação.
O documento da associação católica ressalta desafios que merecem maior atenção. Entre eles, o cumprimento do Plano Nacional de Educação, "instrumento primeiro de uma educação institucionalizada de qualidade social", a vacinação dos profissionais da educação, a reabertura das escolas, medidas mitigadoras das perdas de aprendizagem e maior compreensão sobre o ensino híbrido.
A gerente da câmara de educação básica da Anec, Roberta Guedes, diz que o homeschooling tem, sim, de ser discutido, mas precisa de abordagens aprofundadas com entidades de defesa da infância, com famílias, e verificação das lacunas para sua implantação.
"Trazer uma votação neste momento, sem discussão adequada, não vai acrescentar em nada, pelo contrário. Vai ser uma ação desconectada da pauta de educação", diz. "Estamos em uma pandemia, com impactos na educação que serão de mínimo cinco anos".
Guedes lembra que a escola é aliada na identificação de violência contra crianças e adolescentes, o que fica prejudicado com o homeschooling. Também é ressaltada no manifesto a importância da socialização na formação dos cidadãos e o papel central da escola nessa tarefa, posicionamentos que têm eco entre especialistas.
A relatora do texto na Câmara, deputada Luísa Canziani (PTB-PR), iniciou nesta semana um ciclo de reuniões técnicas online. No primeiro encontro, participaram os ministros Milton Ribeiro (Educação) e Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) –evangélicos, ambos disputam, dentro do governo, protagonismo com a pauta.
Ribeiro, que é pastor, defendeu que a questão da violência não teria relação com o ensino domiciliar e afirmou que a socialização poderá ser feita em outros lugares, como a igreja.
"É claro que a escola oferece essa questão [socialização], mas existem outras formas de socializar, na família, nos clubes, nas bibliotecas e até mesmo nas igrejas", disse, na última segunda (5).
No mesmo encontro, a discordância em acelerar a matéria no Parlamento neste momento também foi expressada por representantes das secretarias de Educação do país, estaduais e municipais.
A Anec vai levar seu posicionamento aos atores envolvidos e tem também conversado com entidades de estudantes, como a Ubes (União Brasileira de Estudantes Secundarista).
Em novembro de 2020, Anec e Ubes assinaram juntas posicionamento contrário à criação de uma cadeira cativa para o ensino domiciliar no Fórum Nacional de Educação. O MEC, que atuou para esse movimento, foi voto perdido na ocasião.
"Se essas famílias acreditam que a escola está equivocada em seus procedimentos pedagógicos, por que não se unem para fortalecer as instituições educacionais, como está proposto no preceito constitucional, ao invés de retirarem das crianças e jovens o direito de conviver com a diversidade", diz o documento apresentado no Fórum.
O STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, em 2018, que o ensino domiciliar não é inconstitucional. Sua oferta depende, no entanto, de regulamentação legislativa.
Defensores argumentam que se trata de um direito das famílias, assegurado pelo STF, e que milhares de adeptos da modalidade vivem em insegurança jurídica. As estimativas de famílias interessadas são incertas: em 2019, o governo divulgou que a medida afetaria 31 mil famílias, mas nota anterior falava em cerca de 5.000.
O Brasil tem mais de 47,3 milhões de estudantes na educação básica. Do total, 81% estão na rede pública, especialmente impactada com a pandemia de coronavírus.
Em 2019, o governo encaminhou um projeto de lei sobre ensino domiciliar. Em 2021, preparou uma nova versão, conforme o jornal Folha de S.Paulo mostrou em março.
O novo texto do PL prevê, por exemplo, que um dos pais ou responsáveis tenha ensino superior completo ou ao menos esteja cursando faculdade. Alunos em ensino domiciliar devem estar vinculado a alguma escola e há previsão de avaliações periódicas.